Edmundo Schaeffer como musterreiter no desfile de 1942
Foto: Egon Arnoni Schaeffer
Numa cidadezinha de uma margem só, descansa na casa da comadre Dorinha, irmã da falecida mãe do seu pai que nada compra mas dá-lhe uma sopa e lençol limpo. Na outra, joga conversa fora com o amigo Zé do Porto, dono da loja de armarinho da cidade de Ihambé. O velho marinheiro compra desde cadernos até linha de costura, desodorante, fita para cabelo e presentes. Mais adiante, lá onde se lê alisa-se e cacheia-se cabelos – deixa shampoo, esmalte, fivelas, anéis e pulseiras. Às vezes sua clientela o trai com a concorrência que chega dentro do furgão verde marca Ford escrito com letras rebuscadas, grandes e douradas “A Confiança”, cheio de mercadorias que ele não poderia carregar nas duas surradas maletas de couro legítimo, herança do pai.
Mas era ele, Cícero, quem tinha as amizades antigas como a do seu Josino, dono do armazém de construção que dele comprava os pregos, as fitas métricas, ganchos de rede, lixas e pequenos serrotes.
Mas Cícero, além do peso das maletas, carregava um segredo que, ao entardecer do décimo quinto dia, depois de descer a Serra da Estrela, só ele e seu amigo de infância perdida, conheciam. Ao dobrar da estrada morava Justiceiro, (alcunha de seu amigo porque à voz pequena dizia-se ele já ter matado jagunços a mando do Dr. Sebastião, o dono das terras do lado de cá do Rio das Graças, afluente do caudaloso Rio das Piranhas.
A cada 15 dias, quando Cícero dava a meia volta lá na casa da sua mulher e filhos para retomar o seu roteiro, saía com uma única idéia na cabeça: descer a Serra da Estrela, e olhar para a cidade de Sta. Joaquina, dobrar a direita e encontrar o amigo no finzinho da tarde. Como sempre depois do abraço, Justiceiro, sentado na cadeira na calçada e Cícero na soleira da porta, conversariam sobre a escapada após o jantar, já noite escura, as estrelas rastejando por todo o espaço. Justiceiro informava D. Carminha, sua mulher, que ia acompanhar o amigo até o fim da vila. Que não esperasse por ele!
Cícero agradeceria como sempre com um leve cumprimento de cabeça, antes de colocar o chapéu, o delicioso jantar e o convite para o pernoite. Explicaria que já se fazia hora de partir para a próxima freguesia, a noite tão mais fresca que o dia. Após a sempre igual despedida, os amigos partiam para a casa de D. Zinha, o bordel de Sta. Joaquina. Nesta casa morava sua querida Laurinha, a dos Anjos.
A cada 15 dias, Laurinha o recebia, perfumada com Água de Rosas (presente de Cícero), mãe de Jesus, seu filho. Naquela noite, não havia rival.
Hoje, porém, Cícero estava inquieto e Dos Anjos perguntou:
– “São as pernas que te doem?”
”Não, não são elas. Sabe, faz uns dias, venho sentindo um negócio esquisito aqui do lado do peito. Não é o coração de verdade que dói, é o outro, o da saudade. Eu só tenho vontade de ficar aqui com você. Aqui é bom, a gente ri, a gente goza, a poeira fica de fora. Você é colorida, o bordado bonito, seu abraço me fecha em concha e eu adormeço branco nos seus lençóis. De manhã vejo o Jesus, bem criado e respeitador. Eu queria ser um homem de uma família só.”
– “Tá bom assim, querido”. Eu te amo. Você é o meu homem. Você não pode abandonar a Elizinha com filhos ainda por criar.
– “Mas eu quero ficar com você para sempre. Morar aqui com você e o Jesus”.
– “Mas como é que vamos mandar o Jesus para a Capital virar doutor se eu não puder mais trabalhar e você andando por esse mundo afora?”
Com o coração envergonhado, perguntou à amada:
– “Me diga, v. recebe outros homens aqui no 5”?
– ”Não, e você sabe disso! É o quarto do Jesus, me deixa dormir sossegada”!
A dor de Cícero se acalmava toda vez que Dos Anjos confirmava que o quarto cinco só pertencia a ele, ela e Jesus. O dia seguinte era o único dia do mês que Cícero se espreguiçava. Dos Anjos não trabalhava e ambos aguardavam mais uma noite juntos.
No outro dia como sempre fazia há 16 anos, Cicero dava meia volta, e por outro caminho, as maletas leves, voltava para a casa de Elizinha.
Ele tinha que chegar no dia 30.