“Damasceno, quem é esta mulher que chora”, perguntou ao ar rarefeito, D. Laura, ao lado do caixão. Ela calculou ser uma mulher miúda, passada dos sessenta anos que chorava discretamente, lencinho de renda, olhos fixos no seu marido. “Será ela a tal”?
Os abraços de pêsames dos amigos, desembargadores, juizes e até um senador não eram importantes. Ela queria desesperadamente saber quem era aquela mulher desconhecida. “Como ousa estar aqui”? pergunta-se, sem mesmo saber de quem se tratava. Seu olhar deslocava-se entre a desconhecida e seu marido de fraque, gravata de seda cinza e cravo branco na lapela, estomago proeminente, relógio com corrente de ouro no colete
(Antes de enterra-lo D. Laura lembrou-se que tinha que tirar o relógio que seria dado ao filho Damasceno Neto).
D. Laura tinha noção – como todas as esposas de homens bem sucedidos da época, ser comum seus maridos terem amantes e, Damascenos Jr. certamente não teria fugido à regra. Sorriu maldosamente com a foto dele ainda vivo, mas já no porta-retratos, chapéu e bengala na mão, cabelo e sapatos lustrosos e terno de linho branco, inglês, – que ela adorava – mesmo se tivessem que ser repassados a cada vez que usados. Mas o trabalho era do mordomo, exclusivo escudeiro de Damasceno. (Quem repassava, todo dia, a dobra dos lençóis era a perfeita Lurdes Maria, portuguesa, era exclusiva arrumadeira de D. Laura).
Com desprazer forçou-se a voltar à realidade e a incomoda figura, seu lencinho de cambraia enxugando os olhos marejados de choro.
Damasceno Jr. era oriundo de uma geração de imigrantes italianos que chegaram a São Paulo em meados de século XIX. Através de muito trabalho, no século seguinte tornaram-se barões, – barões do café e açúcar – e, com a industrialização no começo do século XX, hábeis no comercio e herdeiros da perseverança de seus avós, criaram impérios entre fazendas e fábricas.
Nesta época, não existiam motéis como hoje. Existiam as Garçonières. (* Garçonière em francês vem de garçon, menino-moço, substantivo incorporado ao português com a mesma finalidade até hoje).
Damasceno Jr como todos os homens muito ricos era proprietários de uma garçonière , local onde sua amante importada da França morava. Eram pequenos apartamentos bem decorados geralmente no centro da cidade, próximo ao escritório onde negociavam seu café, geriam o seu banco ou administravam sua indústria. Estes esconderijos eram mantidos em grande estilo.
Os donos de garçonières conjuravam uma confraria cujos segredos eram compartilhados apenas entre eles e o imprescindível e fiel motorista particular com o qual dividiam uma silenciosa cumplicidade.
Nesta tarde quente da qual lhes falo, Damasceno dormitava no banco traseiro do Ford 29 conduzido por Sampaio, seu motorista. Submerso em visões intermitentes ora com suas fazendas, ora com Laurinha e seus filhos, por momentos dele ainda menino na casa dos pais, almoço na cozinha, o fogão a lenha onde apuravam o doce de leite. As passagens sobrepunham-se aos encontros mais recentes com Colette, sua amante. O alegre prazer que ela lhe oferecia todas as tardes de terças feiras, o prazer liquefazendo-se entre sedas e copos de cristais enchidos com champanhe francês que Damasceno invariavelmente trazia, sem faltar uma única vez nesses últimos 15 anos.
Seguro de que Sampaio jamais o delataria à esposa quanto à este costume das terças, nesta, inclinado no assento de couro macio do carro, a cabeça meio pendente, Damasceno estava impaciente para chegar na sua garçoniere. Precisava desabafar com Colete esta ansiedade que sentia. Ela era quem mais sabia de sua vida. Seus negócios, medos e pesadelos. Ela o acalmaria, como sempre.
Ultimamente, porém, os encontros com Colette não obedeciam mais às delongas que os levava até a cama. Esse tempo começou a lhe parecer curto e perdido. Sentia-se cansado, sem vontade. Colette havia aceitado a mudança e, cordata, hoje, mais uma vez recebeu Damasceno, seu companheiro e amigo conforme o seu desejo de sempre: sobre a cama, em posição de Maya, a pele muito branca, seu cabelo negro encaracolado num intencionado coque em desalinho, preso com um grampo de tartaruga. Olhos miúdos, a mão estendida sobre o lençol de seda que apenas cobria seus pequenos seios. Esquecido de si, pôs-se sobre ela e em poucos minutos, aliviou sua confusa sensação.
Ao virar-se de barriga para cima, sentiu uma fisgada no lado esquerdo, mas em seguida esqueceu-a, iniciando um monólogo confessando-se à Colette nunca ter sido tão feliz em toda a sua vida, desde que a conhecera. Contou-lhe, mais uma vez, que Laurinha tinha sido um casamento arranjado e repetiu a história que sabia agradar à Colette: como tinha seis filhos, só havia feito amor seis vezes com ela! Colette apenas sorria e respondia dizendo que o amava muito.
Tranqüilizado, Damasceno levantou-se para buscar uma caixinha que guardara no bolso do paletó e voltou para o lado da amante. Ao deitar-se, a respiração de Damasceno encurtou, fixou seu olhar em Colette, fechou os olhos e morreu não sem antes lhe dizer o quanto a amava ao enfiar um anel de rubi no dedo de sua mão esquerda.
D. Laurinha nunca soube que foi assim que seu marido morrera naquela terça feira. Sampaio contou que foi no escritório de Damasceno e que, ao chegar para buscá-lo, como sempre, às 5 horas da tarde, estranhou as janelas escancaradas e a desordem encima da mesa de trabalho, o copo de água derramado.
“- Achei até que o patrão estivesse dormindo”.
Pedira ajuda para o porteiro e carregaram seu Damasceno para o carro porque pensou que D. Laurinha ia querer fazer o velório em sua grande sala de visitas na Av. Paulista. (Sampaio foi criado na formalidade, como seu patrão).
A existência da garçoniere só foi descoberta por D. Laura quando abriram o testamento de seu marido. Lá constava que o prédio da Rua Libero Badaró, 1500, apto. 4 fora deixado de herança para Collete Milliet.
O orgulho apunhalado muito mais pela curiosidade do que pela ousadia da herança, de véu e vestido preto, D. Laurinha quis conhecer o apartamento onde seu marido a traia.
Sampaio, triste e mudo, conduziu D. Laurinha ao conhecido endereço.
Ela tocou a campainha e, enquanto aguardava abrirem a porta, amaldiçoou Damasceno:
“-Bem feito, pensou que eu não ia vir aqui, não é”?
Colette atendeu, descalça, peignoir rosa amarrado na delgada cintura. Laurinha logo reconheceu a mulher que chorava sobre o caixão do seu marido.
Collete barrou-a na entrada, voz segura e acento forte nos erres, de quem já sabe tudo sobre homens e mulheres e lhe disse:
– “Não posso lhe convidar para entrar. Peço que me desculpe e compreenda: – a senhora também não me receberia na sua casa”!
Colette fechou a porta com delicadeza e agradeceu ao velho amigo pela herança, versou uma lágrima e voltou para as suas agulhas ao som da voz de Caruso. Ela tricotava uma “liseuse”, **(em francês, um casaquinho de lã para dormir usado sobre a camisola) de lã rosa, anel de rubi na mão esquerda.