I
Volta Redonda é uma cidade próxima à porta do inferno, a fuligem penetrando pelas entranhas colore de cinza gente e casas.
Os moradores deste purgatório trabalham na Siderúrgica Volta Redonda. Uns vieram de fora em busca de trabalho, mas Darci Neto – como seu pai Darci Filho e seu avô Darci Caruso eram parte da elite volta-redondense, pois ali se instalaram desde a construção da Siderúrgica.
Como mortos maquilados – retocadas em tons rosas azulados e marrons, dentro do caixão, a tradição desta família estava dependurada nas fotos em molduras ovaladas, suas esposas rigidamente pousando ao lado .
O avô de Darci Neto, foi educado à luz da mais importante história de Volta Redonda: a do presidente do Brasil, Dr. Getúlio Vargas. (história contada em ode e prosa terminando sua apologia, invariavelmente, com “que Deus o tenha”!).
Nesta história Getúlio Vargas era ilustrado como tendo sido o “pai dos pobres” porque cuidou para que o trabalhador não fosse mais explorado pelo patrão e que, ao criar a Siderúrgica Nacional, deu emprego para quem queria trabalhar com seus direitos trabalhistas garantidos. E foi assim que o pai de Darci Neto se aposentou: como funcionário público, após 55 anos de trabalho nas caldeiras da Siderúrgica, apesar da pensão só equivaler a 30 anos de carteira assinada.
Darci pai, apesar de analfabeto, não era insensível e assim, não existia a hipótese de seu filho, Darci Neto, selar seu futuro junto ao calor das caldeiras. Seu filho trabalharia nos escritórios da Siderúrgica!
II
Desconfiado, mas sem opção, imbuído deste passado heroico, Darci Neto galgou os degraus suficientes para que de office boy chegasse a assistente de contador. Hoje, aos 40, espera uma promoção para contador chefe dentro do complexo Siderúrgico de Volta Redonda.
Nestes anos de ascensão profissional, somado à venda dos 30 hectares
de terra, herança da sua avó – mais o prêmio de funcionário padrão que seu pai deixou, Darci Neto comprou um apto de três quartos, um banheiro, sala, cozinha e um balcão. Ali vivem seu filho, Darci de Souza Filho, Carolina, sua filha primogênita, a caçula Maria Augusta e sua esposa Alzira.
O problema desta família, no momento, era a dificuldade em pagar as prestações, financiadas pelo Sistema Financeiro de Habitação. As prestações subiam de preço a cada mês enquanto a inflação corroía o salário e ameaçava o único patrimônio da família.
III
Ao Carolina completar 18 anos, terminado o ensino superior, o conselho do pai, foi que seguisse um curso de inglês e outro sobre a incipiente matéria de informática. Disse à filha que, munida de tais conhecimentos, certamente seria contratada como secretária de diretor da Siderúrgica seguindo assim a tradição instaurada pelo seu avô, e que, receberia um salário bem mais alto que o dele.
Mas no dia do aniversário de Carolina, na hora de cortar o bolo, ela decidiu que exporia à família o caminho que escolhera: o seu verdadeiro sonho: ia ser miss Volta Redonda, Miss Rio de Janeiro, miss Brasil e tinha certeza que conquistaria o título de miss Mundo e depois do Universo. (De fato, Carolina herdara o porte elegante do avô, os olhos verdes e cabelos castanhos da bisavó, a cor de pele mulata, e ainda o corpo perfeito da mãe).
Foi a conta para deixar Darci Neto furioso e ultrajado,
As vozes se calaram, como sempre, para ouvir a história sobre o valor da tradição familiar que todos ali, cansados de conhecer, carregavam nas veias. Darci, completou o discurso, dizendo que não permitiria tal heresia. Sua esposa Alzira, contudo, não concordava com as ideias do marido e passou a defender o seu próprio sonho, argumentando que os tempos haviam mudado, que não era mais o pai, avô e bisavô que ditavam o futuro dos seus filhos. Maria Augusta, por sua vez, defendia a opinião do pai e Darci Souza Filho, a da mãe.
Neste dia acalorado, no qual nem o ar condicionado dava conta, Darci Neto deitou-se certo que esta ideia foram insuflada pela esposa carioca que ele conhecera com a faixa de miss. Para assegurar-se de suas convicções, concluiu que ainda bem que Alzira tivera o bom senso de casar com ele, caso contrário, só Deus sabe que destino ela teria como miss da Escola de Samba Unidos do Salgueiro e profetizou que ela acabaria dançarina numa boate de má fama oferecendo-se para os homens que vinham vê-la rebolar seu perfeito traseiro.
D. Alzira, pivô da história, segura de seus encantos e da fraqueza de seu marido, entre o desejo intenso de ver a sua frustração realizada e a aversão a tudo que dizia respeito a Volta Redonda e à Siderúrgica, trancou os lábios de raiva e vontade de desforra.
Como tudo na vida de cidades pequenas – sequiosas no seu dia a dia de criar histórias, verídicas ou não, cidades onde ainda se acredita em lobisomem em noite de lua cheia, na manhã seguinte à maioridade conquistada de Carolina, a família acordou como todo dia, mas ao Darci Neto girar a maçaneta da porta de saída do apto, esta não se abriu. Virou a chave para a direita, para a esquerda, empurrou a maçaneta para o fundo, sacolejou-a e nada dela se abrir. Todos tentaram. D. Alzira teve a ideia de chamar a vizinha pela janela da área de serviço para pedir que por favor abrisse a porta pelo lado de fora. Mas a janela basculante da área de serviço também não abria. Mais uma vez todos tentaram abri-la à força. Como o basculante tinha sido repintando concluiu-se que ela estava emperrada.
Mas, de fato, na sua teimosia, o basculante transmitiu aos moradores do apartamento que eles estavam irremediavelmente excluídos do mundo exterior. Tentaram o interfone. Certamente o zelador atenderia e então chamaria o chaveiro que, por sorte, também era o serralheiro, para com suas ferramentas, abrir o caminho para fora dali. Mas o interfone estava mudo. Seguiu-se o fio para ver se havia um corte feito por algum intruso que planejara um assalto. Tentaram o telefone. Mudo também.
O silêncio dos aparelhos iniciaram o processo devastador: a troca do fato pelo medo!
Será que os aparelhos revoltaram-se com a falta de comunicação desta família? Se esta era a intenção, a conspiração estava dando certo: o pânico havia se instalado, menos em D. Alzira, mais acostumada a lidar com a realidade da vida.
A televisão! ela deve estar transmitindo a razão para acontecimentos tão estranhos, justificou em silêncio D. Alzira.
Nada. A tela e também o rádio, mudos. Atônitos, filhos e pais se entreolham .
Darci Souza Filho, ousa dar a primeira versão:
“- vi um filme de terror no qual acontecia exatamente isso …. invasores extraterrestres, com um olho só, escorrendo uma gosma verde do corpo e com garras imensas haviam invadido a terra e cortado toda a comunicação entre as pessoas, os países, os estados do mundo. Só eles conheciam o código da nova energia, transformadora, que abriria os canais de comunicação que a gente tão torpemente estava usando aqui na Terra. D. Alzira, sem enunciar uma palavra, toma seu filho nos braços e faz que concorda com ele, mas já formulou na sua cabeça que este é o resultado do medo do marido de enfrentar os perigos existentes além dos muros da Siderúrgica. O atraso mental e a energia negativa em relação ao destino glorioso de Carolina trancou todas as maneiras dela e da família saírem para a vida e comunicarem-se com o mundo.
Sem ar condicionado, sem ventilação, sem uma prosaica porta e janela para abrir, pairava no ar o sentido da putrefação anunciada.
O medo enfim ecoou entre as quatro paredes da sala de jantar e foi alojar-se no silêncio da tradição: nos retratos paternos dependurados.
A família não sabia que, para romper a barreira do som, era necessário que um aprendesse a ouvir o que o outro tinha a dizer.
Darci Neto juntou a família em um círculo, e pediu que, juntos, rezassem um Pai Nosso e que nunca mais passasse pela cabeça de ninguém daquela família, sair de Volta Redonda para inserir-se num mundo corrupto e destituído do amor ancestral. Se todos prometessem obedecer, todas as saídas se abririam .
Para todos menos para mim! Eu sabia que não deveria ter casado com o Darci, ele me enganou com aquela conversa de casamento, emprego seguro e uma cidade promissora para se morar. Eu deveria ter perseguido o título de Miss Mundo. Ia para Miami e casava com homem rico. Eu não posso sair deste apartamento porque a culpa é do Darci!
Passaram-se sete dias e a situação não mudara. Alzira e Carolina estavam ansiosas, mas menos amedrontadas. Intrigadas sim e em busca intensa de uma saída. Sabiam que o fenômeno tinha a ver com o fato de Carolina querer ser Miss Mundo.
Acabara a água, a comida, o papel higiênico e demais produtos de limpeza.
Pairava um cheiro azedo de suor e rezas não atendidas depois que todas as possibilidades de sair dali tinham se esgotado. Neste ambiente inóspito para se viver, mas hóspede de um silêncio em movimento, a percepção foi lentamente se entranhando nas veias das pessoas sem destino certo.
As duas pessoas seguras de que sairiam dali, eram as misses, uma que nunca foi e uma que sabia que ia ser. A Miss que nunca foi, entendeu que teria que ceder ao amor de Darci. Deixar de humilhá-lo e amaldiçoar seu destino apontando o marido como culpado. Carolina por sua vez, sem abdicar de seu direito à liberdade, começou, tenuamente, a entender o passado de sua família, o sucesso – que sempre lhe pareceu pífio – ser um ponto de incontrolável orgulho e realização para os mortos dependurados e seu pai que os seguiu. Seu irmão por sua vez, bem menos certo de si, começou a sentir que se enfurecia quando Carolina era olhada com olhos ávidos – que ele apesar de inexperiente– sabia ser sexo. A caçula, mais esperta, mas feia igual ao pai, odiava a mãe que não amava o seu pai além do ciúmes da irmã linda igual à mãe, que a corroía. E Darci, seria o culpado pela situação sem saída infligida à sua família? O que se passava com ele?
Darci encontrava como saída apenas o choro pela dor oriunda de profunda desorientação entre negar a tradição emoldurada e deixar sua filha ser Miss Universo. No sétimo dia, Alzira comprazeu-se de Darci, aceitando que seu lugar era ao lado dele na horrível cidade de Volta Redonda, conformada, de que de qualquer jeito não teria sido Miss e muito menos do Mundo.
Chegou até o marido, enxugou-lhe as lágrimas, pegou sua mão e a segurou com firmeza. Darci parou de chorar e a partir deste momento começou a se ouvir um verdadeiro conserto de cliques e claques e chaves abrindo portas e vitrôs. Os quadros ovalados desprenderam-se da parede e se espatifaram em mil pedaços. Uma leve brisa, incomum para o lugar, entrou pela cozinha e chegou à sala onde todos se encontravam.
Moral da História: Carolina, segura de si e da sua beleza, não só foi miss Volta Redonda, como Miss Rio de Janeiro, Miss Brasil e por fim, Miss Universo. Darci Neto viajou para os Estados Unidos para ver sua filha coroada ao lado da mãe vitoriosa e conformada.