Todo domingo eu era obrigada a pedir a benção para tia Elsa.
Ela era viúva e tinha uma filha. Espigada e amarelada como as paredes caiadas de sua casa, parecia sempre que ia desmaiar no momento seguinte. Tia Elsa era magra, quase elegante não fossem os ombros caídos e os pés grandes arrastados em passinhos curtos apesar das pernas longas. Inquieta, quase nervosa, não controlava a angústia e o medo no olhar, sempre a pedir perdão.
Seus óculos de aro eram grandes demais para o tamanho do seu nariz, muito curtos em relação a um queixo pontiagudo onde pelos se sobrepuseram quase querendo formar um cavanhaque. Eu tinha medo quando seus óculos dependurados na ponta do seu nariz, como uma lupa, ampliavam ora suas narinas, ora os olhos, ora o seu queixo inesquecível.
As perguntas eram impossíveis de serem respondidas, como por exemplo” por que este copo quebrou”?
Sua tez amorenada chegava a brilhar de tão lisa e esticada. Não dava para precisar sua idade. Seus olhos eram puxados e negros como os olhos dos índios, mas o cabelo não seguia o mesmo padrão. Não lembro se a conheci com cabelos negros. Lembro deles já acinzentados e que, estranhamente, nasciam no meio de sua testa. Ainda sinto a dor do repuxo ao qual os submetia para fazer o coque. Eu os imaginava como uma grande aranha morta, suas patas repuxadas a ponto de se esganiçarem. Os lábios eram carnudos, mas mortos porque nunca os abria para contar alguma história e imagino que nunca beijaram. Reclamava do seu corpo e de Deus que não lhe deu saúde suficiente para aguentar o calvário da vida.
Toda cor ausente em Tia Elsa, ela colocou na decoração da casa. Grandes xales coloridos cujas franjas ficavam dependuradas sobre sofás e poltronas mais pareciam espanholas espalhafatosas. Seu cuidado maior era com a comida guardada cada qual numa caixinha diferente, empilhadas no móvel da sala que um dia vergou ao meio, tantas eram as caixinhas plenas de produtos, descobertos a cada novo dia no mercado central. Na sala tinha um rádio, este também coberto com um xale, menor é verdade, mas também franjado do qual se ouvia música o dia todo.
Em casa, eu ouvia dizer que Tia Elsa tinha dinheiro guardado porque recebia um soldo alto do marido, tenente do exército brasileiro.
Eu passava a tarde de domingo brincando com a prima Maria, uma menina quieta e chata. Mal falava e nunca largava um paninho que ficava amassando entre os dedos inquietos. Nunca entendi porque tia Elsa tinha uma filha já que não ligava para ela, tão preocupada que era consigo mesma.
Hoje não saberia dizer se eu gostava de tia Elsa apesar de que deveria, pois aos domingos, ela assava uns biscoitos de hominhos barrigudos para mim. Eles tinham dois braços e duas pernas e o corpo era um recorte redondo do tamanho da boca de uma xícara de cafezinho. Ela devia ser carinhosa e prestativa, caso contrário, por que se daria ao trabalho de enfeitar, só para mim, com uvas passas pretas, o biscoito de braços e pernas?
Cada vez que eu voltava para casa, minha mãe perguntava:
– “você se comportou direitinho, filhinha?”
Todo domingo a mesma coisa. Um ritual de sagrada família. Durante todos os anos de minha vida. Aos vinte anos descobri o porquê da pergunta: tia Elsa disse à sua irmã, minha mãe, que deixaria um dinheirinho para mim quando morresse.
Hoje Tia Elsa já não faz mais os biscoitinhos. Foi ficando cada vez mais esquisita, empilhando mais caixinhas e esparramando xales em cima dos abajures e cortinas. Quem cuida dela é a prima Maria.
Eu imagino que hoje, 30 anos depois, Maria deva ser igualzinha a tia Elsa porque como ela, desde criancinha usava óculos de aro grandes demais, o queixo e o olhar igual. Pergunto se também empilha caixinhas.
No dia do seu enterro, finalmente, perguntei à minha mãe se tia Elsa havia cumprido a promessa de deixar um dinheiro para mim. Envergonhada ela me disse que não.
– “Quer dizer que ela mentiu para você?”
– “Não. Não. Eu é que não sabia.”
-Não sabia o quê, mãe?”
– O seu tio Darci, marido da Elsa, morreu tenente militar. O soldo de aposentadoria de militar, passa automaticamente de mãe para filha. “É hereditário, mas só para a linhagem feminina.”
Fiquei pensando: valeu a pena comer 960 domingos de biscoitinhos da Tia Elsa?