Todos os dias, antes do amanhecer, sobre a rua de terra que a prefeitura prometeu um dia asfaltar, escorrego no meu sono sempre atrasado.
Lá embaixo, viro à direita no bar do Carioca. Ele já levantou o portão de ferro para os fregueses que tomam o pingado quente que queima o céu da boca e nos faz lembrar que chegou a hora de correr para pegar o trem, o pão com manteiga ainda na mão. O bom dia mal-humorado já foi dado para o Ge, o mecânico, Luiz, o pedreiro e o Tonho, meu melhor amigo e companheiro de espera para irmos juntos para o trabalho. Somos pedreiros na mesma obra.
Se chegarmos atrasados somos descontados no cartão de ponto. Atrasados três vezes, somos dispensados e não adianta explicar para o chefe – que toma o mesmo trem – que a culpa é do trem que atrasou.
Ele diz pra gente:
– “Por que vocês não acordam mais cedo que nem eu?
É que o chefe tem mulher em casa que faz o seu café antes das cinco. O Carioca só abre o boteco as cinco.
A gente diz para o chefe:
– “O cara, dá um jeito ai, você sabe como a vida tá difícil!” Mas ele faz que não ouve. Diz que somos preguiçosos e que no próximo atraso não vai mais perdoar!
Termina dizendo que ele também tem chefe e é ele quem cobra o atraso da gente.
Ando cheio do chefe, do chefe dele, do trem apinhado de gente, do atraso, do caminho de terra, do tijolo e da massa. Só gosto do pingado que desce pelando e acorda a gente.
Quando volto do trabalho, a vida me parece fácil. O trem chega mais vazio,
não fui despedido, ganhei mais um dia. Faço o mesmo caminho da ida. Viro à esquerda, subo uma rampinha, paro no bar do Carioca, troco o café pela cerveja antes de subir o morrão até a casa da D. Elvira. Moro lá num quarto alugado junto com o meu amigo Tonho.
Todos os dias me deparo com a moça sentada na porta do bar, olhando para o céu para ver se a Estrela D’Alva já apareceu no céu. Todos os dias ela está lá sentada no seu banquinho. Tem um livro no colo. Nunca deixo de lhe dar boa noite e ela retorna com um sorriso. Seu vestido é cinza, rodado e comprido até o chão. A única alegria nela é uma gola branca sempre muito limpa. Lembra o uniforme da empregada que eu vi na casa do meu patrão.
Em torno da sua solidão parece que tem um arco de perfume e eu gosto de cheirar. Me faz sentir que cheguei em casa. Quando posso, sento ao seu pé para ver se tiro de seu olhar, um pouco da tristeza. Ela também nasceu na Bahia. Contou que da cintura pra baixo não tinha mais pernas. Ficou paralítica quando foi atravessar a linha do trem e o pé ficou preso no trilho. Contou que seu tio, o Carioca, a trouxe para São Paulo pensando em arranjar um par de pernas ou uma cadeira de rodas, mas conformada disse que não havia jeito e que ainda bem que sabia ler.
Um dia peguei seu livro. Eu não sei ler, mas vi a letra dela, grande e quadrada. Ela escrevia ao lado das letras do livro. O livro tinha uns desenhos. Perguntei o que ela tanto lia. Ao invés de responder começou a contar a história.
Mergulhei na sua voz e me afoguei no que ouvi.
A paisagem era de verdes vales, as flores amarelas, nuvens passando, uma casinha perdida na floresta. A casa era feita com tijolos de chocolate e a massa com leite condensado. As janelas de biscoito, cobertas com bolinhas de bala de goma colorida. Aí ela contou que nesta casa morava uma bruxa que se chamava Ivone (o nome da mulher do Carioca) e que mantinha a sobrinha, que nem sobrinha dela era, amarrada num banquinho o dia todo. Dava comida uma vez por dia porque dizia que era para ela não engordar porque se não ficava pesada e não poderia mais carregá-la até a porta da casa. Vestia ela de cinza para não chamar atenção de ninguém e só lavava a gola branca para que ninguém pudesse dizer que ela não tomava banho todo dia. Botava perfume para esconder o cheiro do pinico que ficava embaixo do banquinho. Continuou dizendo que a sua única alegria era no fim de semana, quando um moço bonito vinha conversar um pouco com ela e às vezes lhe trazia um sorvete para tomarem juntos.
Casei com a Jurema. Não consegui construir uma casa de tijolo e massa para ela, mas pintei o barraco de marrom, as janelas de cor creme com bolinhas coloridas. O Carioca comprou uma cadeira de rodas para ela entrar na Igreja de braço dado com ele.
Aprendi a ler e nunca mais perdi o trem das cinco e dez.
Lá embaixo, viro à direita no bar do Carioca. Ele já levantou o portão de ferro para os fregueses que tomam o pingado quente que queima o céu da boca e nos faz lembrar que chegou a hora de correr para pegar o trem, o pão com manteiga ainda na mão. O bom dia mal-humorado já foi dado para o Ge, o mecânico, Luiz, o pedreiro e o Tonho, meu melhor amigo e companheiro de espera para irmos juntos para o trabalho. Somos pedreiros na mesma obra.
Se chegarmos atrasados somos descontados no cartão de ponto. Atrasados três vezes, somos dispensados e não adianta explicar para o chefe – que toma o mesmo trem – que a culpa é do trem que atrasou.
Ele diz pra gente:
– “Por que vocês não acordam mais cedo que nem eu?
É que o chefe tem mulher em casa que faz o seu café antes das cinco. O Carioca só abre o boteco as cinco.
A gente diz para o chefe:
– “O cara, dá um jeito ai, você sabe como a vida tá difícil!” Mas ele faz que não ouve. Diz que somos preguiçosos e que no próximo atraso não vai mais perdoar!
Termina dizendo que ele também tem chefe e é ele quem cobra o atraso da gente.
Ando cheio do chefe, do chefe dele, do trem apinhado de gente, do atraso, do caminho de terra, do tijolo e da massa. Só gosto do pingado que desce pelando e acorda a gente.
Quando volto do trabalho, a vida me parece fácil. O trem chega mais vazio,
não fui despedido, ganhei mais um dia. Faço o mesmo caminho da ida. Viro à esquerda, subo uma rampinha, paro no bar do Carioca, troco o café pela cerveja antes de subir o morrão até a casa da D. Elvira. Moro lá num quarto alugado junto com o meu amigo Tonho.
Todos os dias me deparo com a moça sentada na porta do bar, olhando para o céu para ver se a Estrela D’Alva já apareceu no céu. Todos os dias ela está lá sentada no seu banquinho. Tem um livro no colo. Nunca deixo de lhe dar boa noite e ela retorna com um sorriso. Seu vestido é cinza, rodado e comprido até o chão. A única alegria nela é uma gola branca sempre muito limpa. Lembra o uniforme da empregada que eu vi na casa do meu patrão.
Em torno da sua solidão parece que tem um arco de perfume e eu gosto de cheirar. Me faz sentir que cheguei em casa. Quando posso, sento ao seu pé para ver se tiro de seu olhar, um pouco da tristeza. Ela também nasceu na Bahia. Contou que da cintura pra baixo não tinha mais pernas. Ficou paralítica quando foi atravessar a linha do trem e o pé ficou preso no trilho. Contou que seu tio, o Carioca, a trouxe para São Paulo pensando em arranjar um par de pernas ou uma cadeira de rodas, mas conformada disse que não havia jeito e que ainda bem que sabia ler.
Um dia peguei seu livro. Eu não sei ler, mas vi a letra dela, grande e quadrada. Ela escrevia ao lado das letras do livro. O livro tinha uns desenhos. Perguntei o que ela tanto lia. Ao invés de responder começou a contar a história.
Mergulhei na sua voz e me afoguei no que ouvi.
A paisagem era de verdes vales, as flores amarelas, nuvens passando, uma casinha perdida na floresta. A casa era feita com tijolos de chocolate e a massa com leite condensado. As janelas de biscoito, cobertas com bolinhas de bala de goma colorida. Aí ela contou que nesta casa morava uma bruxa que se chamava Ivone (o nome da mulher do Carioca) e que mantinha a sobrinha, que nem sobrinha dela era, amarrada num banquinho o dia todo. Dava comida uma vez por dia porque dizia que era para ela não engordar porque se não ficava pesada e não poderia mais carregá-la até a porta da casa. Vestia ela de cinza para não chamar atenção de ninguém e só lavava a gola branca para que ninguém pudesse dizer que ela não tomava banho todo dia. Botava perfume para esconder o cheiro do pinico que ficava embaixo do banquinho. Continuou dizendo que a sua única alegria era no fim de semana, quando um moço bonito vinha conversar um pouco com ela e às vezes lhe trazia um sorvete para tomarem juntos.
Casei com a Jurema. Não consegui construir uma casa de tijolo e massa para ela, mas pintei o barraco de marrom, as janelas de cor creme com bolinhas coloridas. O Carioca comprou uma cadeira de rodas para ela entrar na Igreja de braço dado com ele.
Aprendi a ler e nunca mais perdi o trem das cinco e dez.
Apaixonei elo pedreiro!
Querida Lidia,
Obrigada pelo seu comentário. Ao superar o momento de transição entre o Legado Vivo e meu novo site,
Bettinalenci.com.br , deixei de responder às msgs dos leitores. Como são bem vindas! Desculpe o atraso
de retorno. Continue sendo minha leitora e adorei o seu comentário sobre o pedreiro. Tbm gosto muito dele.
Beijo
delicia Lidia. Mais um texto lido!
gosto particularmente dos contos brasileiros!
carinho e obrigada pela alegria que v. me causa !
bj
b