Ela não era mais tão jovem para sentir tanta saudade dos pais, mas imaginou-os ainda vivos e se entristeceu. Por conta desta tristeza irrecuperável soube ter chegado a hora de visitá-los depois da última vez que chorou à beira dos túmulos ao enterrá-los, vinte e cinco anos atrás.
Fênix, o hotel de sua lembrança, não era mais o melhor hotel de Passos Largos, onde nascera. Tornara-se um sobrado antigo desfigurado pelo tempo com quartos escuros postos à venda para uma dormida.
Desceu do trem. Chovia muito. A inexistente calçada e a lama quase lhe cobriam os pés. Sentiu um arrepio e um laivo de arrependimento por ter vindo. Não era o cenário que havia esperado encontrar. Sua lembrança remontava a uma cidade interiorana, de paralelepípedos, cujas árvores floresciam na época da quaresma, bancos de pedra e um coreto no centro da praça, em frente à igreja. A lembrança a traíra ao lhe insuflar que nada teria mudado. Não voltara mais a Passos Largos depois do enterro dos pais.
Ao chegar ao hotel Fênix, uma mulher velha e gorda estava à sua espera, sentada detrás de um balcão pintado com grossas camadas de marrom brilhante. As chaves dependuradas num quadro de feltro verde sujo, paredes descascadas emolduravam a cena. Um banco, flores de plástico engorduradas por cima da única mesa coberta com uma toalhinha de crochê azul claro, furada e desbotada.
A mulher lhe perguntou se precisava de ajuda para carregar a mala. Ela agradeceu. A senhora subiu atrás dela tagarelando sobre suas dores e as dificuldades em manter o hotel depois da morte do seu marido. Ela continuava subindo as escadas, calada. Na soleira da porta, a dona comunicou que, caso a hóspede quisesse tomar um banho, esperaria uma meia hora, pois teria que ligar as caldeiras. A única freguesa do hotel precisava de um banho, mas, conformada com a falta de água quente, deitou-se na cama e adormeceu.
Sonhou que seus pais a convidavam para sentar-se numa mesa que parecia ser a mesma sobre a qual ela comera na infância. Não havia comida nas tigelas. Ouviu colheres batendo nas panelas vazias. Acordou suada, a tarde ainda de sol ardendo sobre as suas vestes de freira dominicana. Seu peito parecia desejar dividir-se ao meio. Concluiu ter tido um pesadelo. Bebeu água fresca da moringa de barro sobre a mesa, o copo de metal geladinho e decidiu, ainda confusa, não esperar pelo banho e rumar sem demora para o único cemitério da cidade, razão de sua vinda. Encontrou os portões de ferro forjados e pretos escancarados, não havia guarda nem coveiro. O cemitério estava abandonado e pior, barulhento porque uma via expressa havia sido construída ao lado. Nos túmulos vilipendiados onde erva daninha crescia procurou, entre Anjos e Nossas Senhoras desfigurados, os túmulos dos pais e não com certa dificuldade os reconheceu pelas fotografias emolduras por uma guirlanda de metal, incrustradas na pedra: uma do pai, outra da mãe, mas não mais uma ao lado da outra.
Os túmulos haviam sido arrancados da terra, os ossos expostos, a placa de bronze com as datas de nascimento e falecimento, roubadas.
Voltou a passos rápidos para o quarto do hotel, trancou a porta, não versou nenhuma lágrima e ao tomar o esperado banho, a água lhe caiu sobre o corpo seco, purificadora, como no batismo. Lembrou-se do Batismo de São João, história que seu pai gostava de contar para ela antes de dormir.
Durante horas de vigília, sem conseguir apagar a imagem do cemitério, tentou primeiramente precaver-se em não acreditar em fantasmas que levantam das tumbas para vir molestar os vivos, também estas, histórias contadas na infância. Igualmente tentou não relacionar os delitos cometidos pelos seus pais enquanto em vida como castigo, os ossos desenterrados sem entrada para o paraíso. Ela teve a certeza que tão pouco ressuscitaram porque só a Jesus foi dado tal privilégio.
Há muito ela já os havia perdoado, na reza matutina do convento, pois hoje compreendia porque homens e mulheres cometem delitos.
Aceitou o fato de várias vezes homens indignados adentrarem a porta xingando o pai cobrando dívidas de jogo. Até a hora em que a casa teve que ser vendida para pagá-las. Aprendeu a perdoar sua mãe que roubava batom, esmalte, pequenos objetos da vaidade, nas lojas de armarinho.
Apesar deste passado humano, sempre nebuloso, conhecido apenas por vagas sensações incômodas para todos nós, nunca deixou de amá-los. Era por isso que viera visitá-los. Queria homenageá-los e perdoá-los mais uma vez, porém a visão do túmulo mexido ainda embaralhava seus sentimentos e acabou interpretando o sonho da tigela vazia como uma premonição. Ajoelhou-se para rezar fervorosamente e, no meio do “bendito ao fruto” da Ave Maria, adormeceu e teve outro sonho.
Havia um padre à beira da cova dos pais, mas ele era um esqueleto. Não usava batina. Estava nu. Ela chegou correndo com a roupa do padre, preta e pesada, mas era tarde, seus pais já estavam debaixo da terra. O sonho continuou, ela “do lado de fora” da cena, “vendo” que seus pais não haviam recebido a correta benção dos mortos, amedrontou-se com a possibilidade deles não irem para o céu.
Madrugou com este sentimento no coração, mas não se levantou da cama ao alvorecer como fazia todos os dias, disposta para o trabalho pesado do convento.
Refletiu sobre o sonho. Lembrou-se de sua vontade, ainda adolescente, de tornar-se freira.
Seus pais tentaram dissuadi-la alegando que ela era bonita e alegre demais, que o casamento, mesmo se imperfeito, seria melhor do que casar-se com uma imagem. Apesar dos protestos, tardiamente decidiu-se pelos votos. Era feliz com a sua escolha, até este momento. Voltou aos dois sonhos na tentativa de retificar o passado: o prato vazio significava, com certeza, dizia a si própria, a ausência de carinho em sua casa. Os talheres batendo nas tigelas vazia nada tinham a ver com premonição ou fantasmas que vieram para lhe perseguir durante o sono. Ladrões de túmulos existem em todo lugar, cidade grande ou minúscula como a dela, concluiu.
O padre sem batina à beira da cova fora seu temor de seus pais irem para o inferno por não terem recebido a benção por sua culpa porque mesmo correndo para buscar a batina do padre, não chegou a tempo. Sentou-se à beira da cama, aliviada e perguntou-se:
-“queria mesmo ser freira, ser casta, servir a Deus e à Santa Igreja? “ Servir, …., servir…. este é o termo certo para a minha escolha. Excluir-me dos obstáculos que os leigos precisam enfrentar, proteger-me da maldade do mundo, desconhecer que havia homens com a coragem de profanar túmulos e roubar uma placa de bronze, quiçá os dentes de ouro dos mortos. “!
Nunca havia pensado desse modo. Vestiu suas vestes de freira e resolveu ficar mais um dia neste quarto de hotel. Iria passear, procurar nas esquinas da sua memória os lugares da infância, voltaria ao cemitério para cobrir as covas, almoçaria no mais aprazível restaurante da cidade, talvez fosse ao cinema. Tomaria seu lanche noturno como no convento, dormiria e só no dia seguinte pensaria no que fazer da sua vida. Ela tinha vindo de longe para voltar a sua cidade natal. Estava feliz, quase alegre com seus pensamentos retardatários e a perspectiva do dia a sua frente. Assumiu não ser mais moça para sentir saudade dos pais e neste dia, pela última vez, imaginou-os ainda vivos, mas não se entristeceu. Agora sabia que viria visitá-los uma vez por ano, como fizera outrora quando ainda viviam.
É um hábito sadio visitar os pais vivos e os pais mortos.
A morte do meu pai, foi a grande lição de coragem que ele nos deixou. Eu fazia minha primeira exposição individual em uma galeria – sou artista – e minha irmã viera de N.Y., onde morava, para me ajudar na montagem. Não a vi e fiz o trabalho sozinha; a noite, já durante o burburinho de pessoas comentando os trabalhos, reclamando minha atenção, senti outra vez falta dela. Cadê tua mãe – perguntei ao meu sobrinho. – Mamãe está no hospital com vovô. De manhã cedinho, fui com meus filhos ao hospital. Papai estava em um dos quartos antigos, com grandes janelões abertos para o jardim. Um bando de filhos, meus irmão e netos rodeava a cama e comentavam na maior alegria tudo sobre a exposição. Papai, interessadíssimo perguntava como havia sido, se tinha bastante gente, se alguma obra havia sido vendida… Então, fez uma pausa e nos disse – Agora, vocês vão para a outra sala (acho que ele pensava que estávamos em São Sebastião, o lugar paraíso dele – pois não tinha nenhuma outra sala) – pois tenho que pensar naquilo que tenho que fazer. Mamãe quis ficar ao seu lado mas ele disse que o que ia fazer teria que ser sozinho. Depois de alguns minutos, nos chamou , agradeceu a cada um, deu um adeus com as duas mãos, suspirou e morreu. Foi ou não foi a grande lição de coragem e humildade? Eu o amo e ele está presente na minha arte pois me ensinou a melhor coisa que um artista como ele, podia passar a mim: me ensinou a olhar. É meu legado.