Volto ao conteúdo das minhas recorrentes reflexões sobre o Tempo “Que Passa.”
Que ele passa, passa mesmo, mas o coloco entre aspas porque no passar do tempo o mais comum é ouvir não só como passa rápido mas como aceitar, em tempo real, no corpo, o fenômeno da finitude. Na verdade, sua percepção aguda nos atravessa enquanto temos a certeza de que existimos. Aceitá-lo como passageiro equivale a aceitar a nossa Existência neste mundo.
Até encerrar-se o domínio inocente sobre o tempo e seu fluxo natural, foquei em um hábito que preenche, até hoje, o conteúdo sensível dos objetos que conversam comigo. Este sentimento nasceu ao tomar conhecimento da ampulheta – intocada pelos adultos da casa, era eu que, por impulso, a desvirava a cada vez que passava pela vitrine de bibelôs. Observava, intrigada, a fina areia, muito branca, que se movia através de um buraquinho, de cima para baixo e, depois de virada, escorria num moto contínuo. Explicaram-me ser a contagem de minutos transcorridos. Hoje, apesar de não saber quantos minutos servem para cada tamanho de ampulheta, tenho certeza de que foi ali que nasceu meu sentimento de melancolia. Aprendi que o conteúdo de areia encapsulada na parte superior é o alvorecer e na inferior um entardecer. O buraquinho, minha vida escorrendo.
Os objetos possuem nome, tempo, idade, humor, constrangimento, solidão e endereço. São muitos e a maioria não passa pelo buraquinho da ampulheta pois não me pertencem. Por exemplo, a tábua de Moisés presenteada por Deus conta a sua história para os judeus e cristãos. O código de Hamurabi conta o primeiro alfabeto da história escrita, as pirâmides do Egito contam como escravos foram capazes de construir tumbas gigantescas sem os guindastes de hoje. Nos museus é possível datar cada peça exposta e conhecer a situação em que foi criada. Mas, as histórias e ou lendas verdadeiras não pertencem à nossa memória. A ela só pertencem os objetos que guardam os nossos segredos. São aqueles que desvendam nossa intimidade, a maneira de ser. É neles que reside nosso lugar e depositamos a confiança de que não falarão ao intruso.
Pelo buraquinho da ampulheta passaram as casas onde morei e moro hoje. Da casa grande, nos objetos trazidos do passado, recordo, até a altura do galho da árvore com os nomes inscritos dos meus avós e através deles, opacamente, dos meus bisavós. Minha memória não alcança mais longe, porém acredito que possuem as iniciais de uma família longeva. Eu os trouxe para morar em minhas mudanças de moradia, mesmo se a maioria não mais me contava histórias. Ocupavam seu lugar, porém mudos!
Recentemente mudei para uma casa na qual só cabe uma pessoa: eu!
No entardecer fui obrigada, aliviada, a me desfazer de muitos objetos que carreguei dos museus, da história e da família. O volume acumulado não passava pelo buraquinho da minha ampulheta, mas preservei alguns objetos para os meus filhos, aqueles com os quais conversei a vida toda. Foi neste movimento do tempo que entendi que a memória ancestral deles não tem como ser igual a minha.
A passagem da alvorada para o entardecer, apenas e tão somente, abriu passagem para as testemunhas da minha memória.