Na maca, no antebraço um aparelho de pressão, no outro uma injeção de contraste cujo objetivo era dilatar todas as veias do corpo para saber a quantas batia o seu coração. A cabeça parecia que ia se separar do tronco, as pernas inexistentes, o corpo prestes a estourar. Durante torturantes 17 minutos achou que o estado em que se encontrava era próximo ao seu fim quando, em meio à angustiante sensação, uma percepção pontuda pareceu contradizê-la deste sentir: era seu coração que estava dilatado de ódio, inveja e ciúmes. Era um só bloco monolítico, frio e transparente que como gelo quando tocado eletriza a mão num choque. Uma tomada chamuscada por um eletrizante curto-circuito. Jamais havia lhe passado em pensamento ser ela uma pessoa portadora de tais sentimentos vis, conhecida pela educação e gentileza. Pela retração e generosidade.
Ainda presentes as informações enquanto esteve deitada na maca, Sonya agora olhava para o mar cinza, sem o sol que o clareava de verde. Ela não gostava da areia que lhe entrava pelos espaços dos dedos do pé, arranhava sua pele. Incomodava aquele granulado grudado no corpo, por isso estava sentada no deck da sua casa vazia. Ultimamente sentia-se inquieta ouvindo as batidas do coração quando esticada sobre a toalha excessivamente colorida para deixar o mormaço lhe banhar o corpo dolorido. Sabia que o sol tinge sua pele de vermelho sendo ela de compleição clara, normal em sua terra natal, a Hungria. Sabia que seus cabelos tingidos se tornariam cor de trigo maduro com as raízes brancas. Normalmente vaidosa, não estava ocupada com detalhes e sim com a morte, mas não precisamente com medo. Não sabia se havia vida depois por que, concluiu, também não haver vida antes. A vida é um conjunto de contingências naturais e intrínsecas a ela mesma. Um feixe de moléculas, células, músculos, veias e ossos cobertos por uma pele branca como a sua.
Seu olhar naquele momento era vago e seus olhos azuis transpareciam o reflexo do mar cinza. A imagem de um esqueleto, daqueles de escola primária ou de medicina, – tanto faz porque somos todos iguais por dentro, não importa se os ensinamentos são para a simples ciência ou para estudos neurológicos complexos – a imagem perante Sonya dançava. Cor de marfim dependurado por uma argola em um cabo de aço na altura de um ser humano, o esqueleto balançava de um lado para o outro. Vivia solto no ar, igual a miniatura do chaveiro de sua casa dependurado na porta. Gostava do chaveiro, pois a fazia lembrar-se diariamente que a Humanidade é igual para todos. Uns acreditam-se mais bonzinhos e outros ignoram que são mauzinhos, ambos coabitantes da mesma alma. Sonya não tinha obsessão nem por morte nem por esqueletos. Achava normal ter pensamentos sobre ambos. E assim entregou-se sonolentamente às perguntas:
“Como quero ser enterrada um dia? Embaixo da terra vou virar o esqueleto da aula de anatomia. Cremada, desapareço nos grãos de areia desta praia, misturada aos caranguejos secos, conchas e lixo. Mas vou ser queimada. Vou ser, indagou-se? Se vou ser já sinto a dor da queimadura portanto ainda acho que estarei viva? Que absurdo”!
Ausente a angústia, mais uma vez afastou estes pensamentos, pragmaticamente. Considerava – os normais para qualquer vivente.
O dia nublado era ao seu gosto. O calor fazia sua pele coçar. Seu olhar pousou em uma onda e não a acompanhou para ver onde foi se dobrar para desaparecer mansamente no final de sua trajetória. Sabe-se lá onde nasceu!
Fitou por longo tempo, imóvel, um ponto fixo da água em doce movimento. Não conseguiu impedir as lágrimas que há pouco ainda havia enxugado com a ponta da toalha. A vida a havia traído. Traiu seu sonho de viver um amor de velhos. Seu companheiro cansou-se dela, disse ele. Apesar de que Sonya já entrara na idade onde iludir-se não faz bem à saúde uma vez que velhos já deveriam, diz a voz dos almanaques de auto ajuda, distinguir entre a realidade e o desejo de vir acontecer. Mas, como os jovens que não sabem o que é a realidade, os velhos esquecem que ela existe quando o sofrimento vira um enorme recipiente onde o metal líquido, fundido, cozinha vermelho em fornos de 360 graus. A dor vagueia e, cega, destrói, entrelaçando o coração com palha torcida e faz dele um balaio que defende a si mesmo e ataca com a ferocidade de um animal irracional. O coração deixa de ser um imoji embrulhado num lacinho cor de rosa. O laço é preto. De luto. Ele não se cala noite e dia. Faz Sonya repousar em sono inquieto ao viver, dormindo, sonhos divididos em cores. O ódio preto, o desejo branco, a raiva amarela, o ciúmes verde. Dizem que as cores são como uma maçã cortada em porções iguais. Não é verdade! A cada dia a extensão dos sentimentos toma proporções diferentes, dependendo com que cor sonhou seu sofrimento.
Fazia-se tarde, nuvens escuras encostavam na água do horizonte como dois amantes. Com um suspiro de não conformação com as contingências da vida, levantou-se e foi tomar um banho para que nenhum grãozinho de areia sobrasse grudado ao seu ainda belo e fortalecido corpo que negava sua real idade.
Sob o chuveiro começou a refletir sobre a trajetória da mulher. Conhecia o suficiente as lembranças de sua infância até o dia do casamento. De lá para cá, passeando por entre as últimas quatro décadas, lembrou como foi envelhecendo sem dar atenção ao fato. Sua vida era plena e bela. Amava cegamente seu companheiro e entendia este amor como longa paixão ao aceitar suas deficiências para com ela e a frustração que não percebia ir se empilhando sem consciência. Não era importante. Amava romanticamente.
Seguiu a cronologia a partir do seu casamento aos 40 anos. Sorriu ao lembrar que, ao fazer um exercício de cabeça para baixo surgiu o primeiro sintoma do afrouxamento da pele do rosto que pendeu, com a gravidade. Não se apercebeu, até então imperceptíveis, dos leves riscos de bico de pena fina entorno do “bigode chinês” e que o processo seria contínuo, diário, como as falésias descascadas constituídas de camadas mutantes que conheceu na Tailândia. O tempo simbolizado pelas claras águas que nelas batiam. Transpôs-se para a década seguinte quando, perplexa, percebeu que sua cintura havia mudado de lugar, mas não deu bola, ainda não era uma barriga. À mesma época sua filha lhe chamou a atenção que havia uma salsinha verde destacando-se dos seus dentes brancos e bem enfileirados: a gengiva cedera e começava a deixar a raiz dos dentes exposta. Mais dez anos e os soutiens, sapatos e camisas não serviam mais. Os tornozelos incharam, as costas se expandiram, o peito se avolumou. Teve que se acostumar a carregar óculos de leitura na bolsa. Tampouco deu bola! Os óculos lhe caiam bem! Era ainda muito bonita e podia comprar tudo novo no tamanho certo disfarçando as imperfeiçoes antes tão perfeitas e atraentes. Mudou seu estilo de roupa, joias e cabelo adaptando-se a modelos mais jovens criados para mulheres maduras como Sonya. Ela continuava atraente porém não mais sedutora. Inexorável, mais uma década e tanto passara quando, horrorizada, chegara o dia em que, pela primeira vez, ao subir e depois descer do carro, sua filha a pegou no braço para ajudar e assim o manteve para atravessar a rua. Tornara-se uma senhora de idade! Passou a ser a senhora pra lá, a senhora pra cá. Seu projeto de vida falhara: a inveja que sentira na maca era da mais moça pela qual fora trocada. O ódio, suficiente para matar a ambos e o ciúmes, lá onde está o amor lá se encontra, lado a lado, dividido em dezenas de partículas da lembrança, o ciúmes, um rato de esgoto, o pior.
Sonya sabe que tem que acertar as contas com o tempo e que sempre estará só face a face com ele.
Sem mais grãos a lhe coçar a pele, voltou para o deck, o mar mais cinza do que nunca. Os amantes haviam se deitado no colchão do horizonte. Jogou a boia de salva vidas: o cotidiano, o dia a dia – monótono, previsível e constante – a salvaria.
Lindíssimo relato. Acompanhamos Sonya, em seu caminho de solidão, habitada por lembrança e sentimentos que rejeita. Na sua narrativa, as vivências que muitas de nós experimentamos em determinados momentos da vida, faz reviver sentimentos de ódio, de inveja, de ciúmes, tão dolorosos. A perda da juventude, tão bem descrita, toca a todas nós, mulheres maduras. Não existe mais fronteira entre o dentro e o fora: a paisagem triste do mar e das nuvens invadiu o espaço íntimo de Sonya.
Muito tocante.
Queridíssima Sylvia,
Obrigada por v. “pegar”o sentido do texto com exatidão. Minha obsessão é o Tempo que minuto a minuto passa-se
a vive-lo em sua grandeza incompreensível = o fora, o abstrato; o dentro, as vezes cruel e pungente e outras aliviados dos processos internos mais dolorosos. O Tempo tem faces claramente visíveis em nosso envelhecimento de corpo e alma.
bj
Gostei muito do teu jeito de escrever….o argumento sobre a velhice ja deu…..melhor criar a propia historia
Querida Giada, obrigada pelo seu comentário. São estes retornos que incentivam a gente a continuar escrevendo.
Contudo, minha intenção, nos textos, é explorar O Tempo que passa. O Tempo em que tudo na nossa vida vai envelhecendo:
Corpo, alma, reflexões. Presente, passado, futuro. Acredito que a vivencia do Tempo é a nossa própria história, de cada um de nós.
beijo e fique bem
B