Hoje tomei meu copo de água habitual. Existe uma jarra de plástico laranja em cima da pia que contém água filtrada para facilitar o acesso a um copo de água. Como costumo passar por aquele local com pressa, a caminho da porta de saída, sempre atrasada, mas com sede, não tenho tempo de ficar segurando o copo debaixo do filtro esperando ele encher. Verto a água da jarra laranja no copo, engulo aos borbotões, invariavelmente molho a roupa porque a pressa em beber faz com que ela vaze pelas laterais da minha boca.
Mas a jarra laranja foi destinada a ficar em cima da pia sempre cheia não só por conta da pressa, por outra razão também: ao colocar a jarra embaixo do filtro de água ela, invariavelmente, transbordava porque eu me distraia olhando pela janela para ver o que acontecia no apartamento em frente.
Quantas vezes eu não enchia um copo com a água da jarra e ficava olhando pela janela, sorvendo, entre um gole e outro, uma história que eu estava seguindo, como uma novela em quadrinhos. Infelizmente, devido a diferença de altura entre a minha janela e a do prédio vizinho, só me era permitido ver as pernas das pessoas sentadas no sofá. Quando cruzadas eram as pernas das visitas, quando estendidas sobre a mesa ou dobradas em cima do sofá eram pessoas intimas da casa. Também me era permitido ver dois jarros chineses azuis, sobre duas mesas laterais ao lado de dois sofás, um frente ao outro que por sua vez encobriam as pernas das duas mesas. Num deles a dona da casa colocava flores. O outro estava sempre vazio. Era sempre o vaso da direita que estava florido. Estranhamente, não havia cortinas nem persianas para resguardar os moradores da minha curiosidade. Ao lado da sala de visitas, tinha um banheiro e é nesta direção que meu olhar indiscreto pousava interessado. Era comum, todas as vezes em que eu ia me servir de água, um senhor, gordo e largo, já velho, estar sentado na bacia, as calças abaixadas, lendo jornal ou fumando, soltando a fumaça pela janela aberta sem cortinas de proteção. Havia um cachorro que fazia companhia, deitado sobre uma toalha, dentro do box do chuveiro. Lembro o dia em que ele chegou, pequenino, naquela casa. Chorou muito!
Na sala de visitas eu reconhecia este senhor, por conta dos seus sapatos, largos, do tipo Dr. Scholl porque seus pés eram grandes e inchados e, se eu bebesse vários copos de água, a noite eu o reconhecia pela cor da sua calça, a mesma do dia. Acompanhava também, – porque de noite, antes de dormir tomo um copo de água, – a vida da mulher sem rosto. Também dela eu só reconhecia os chinelos e as mãos porque elas tricotavam na frente da TV. Deduzi ser sua filha por conta do tornozelo afinado. Imaginei-a separada e que veio morar com o pai. Parecia jovem ainda, mas já com idade para ter netos por causa do tricô. O senhor do banheiro também assistia Tv junto com ela, sem fumar. O cachorro continuava no box do banheiro. Tenho certeza que ela proibiu que o pai fumasse na sala e sem dúvida alguma o seu pai era doente: estava sempre no banheiro, de calças abaixadas, exalando a fumaça do seu cigarro pela janela.
Hoje, domingo, fui tomar o meu costumeiro segundo copo de água da manhã. Olhei pela janela e levei alguns segundos para entender e me refazer da visão. Desolada, vi a sala vazia e o banheiro com a janela fechada. Será que o pai morreu por falta de ar e a filha mudou de casa?
Uma sensação de solidão civilizatória tomou conta de mim. Algo havia mudado na minha vida, entre o Natal e o Ano Novo pelo simples fato de não ter tomado copos de água da jarra laranja, olhando pela janela do meu apartamento. Eu fora veranear.
Querida Bettina. Que texto mais bem escrito e pensado!. é messo um prazer ler suas cronicas.
beijo Tommy