Em 30 de novembro de 1999, Maria acordou bem-disposta. Espreguiçou-se, dando-se tempo para refletir sobre os rumores insistentes de que no dia 31 de dezembro, na passagem para o século 21, ocorreriam no mundo transformações tão espantosas como o apagão de todos seus dados bancários. Reinava o caos das opiniões. Mas Maria deixou de prestar atenção na tragédia que poderia ocorrer. Tomaria seu café. Em pequenos goles, usufruiria do suco, alternando-o com mordidas na torrada coberta com geleia de amora. Leria o jornal, depois faria a lista dos presentes a serem providenciados para a noite de Natal.
Eis que um dos seus dois filhos irrompe na sala, lhe dá um beijo de raspão e pergunta:
-Mãe, são dez horas. Você vai sair de pijama? Já estou indo. Beijo!
– Por que tanta pressa? Fica um pouco comigo e me ajuda com a lista de Natal. Impaciente, o filho senta e belisca um pão com geleia enquanto reage em pensamento: que chatice!
Maria, brincando com o lápis, decide, antes de anotar qual presente para cada um, explicar para o filho porque às 10 horas da manhã ainda se encontrava de pijama.
– Acordei e fui ao banheiro, afinal todos nós temos que realizar nossas necessidades. Li um pouco daquela revista, aquela que a gente deixa para dar uma folheada enquanto espera acontecer. Aí, voltei a deitar um pouco e aqui estou para tomar meu café.
– Mãe, eu almoço em casa. Tudo bem?
– Claro! Vou tomar meu banho com calma, depois vou ao mercado e almoçamos gostoso. Algo especial do mercado?
– Mãe, ao meio-dia tá bom pra você? Tenho que sair às 13h.
-Por que tanta pressa?
Repassando a agenda do dia, retifica:
-Pode ser ao meio-dia e meia? O filho acena com um OK, já na porta de saída.
Que geração apressada, conclui e volta a montar, com calma, sua lista de presentes para o Natal.
Em 30 de novembro de 2024, Maria pula da cama, já atrasada para as obrigações a serem cumpridas. Neste momento, ela é ansiosamente assaltada pelo receio de não dar conta do dia.
Primeiro ato é olhar o celular para se certificar quais os compromissos na agenda. Espera que as suas necessidades fisiológicas se resolvam rapidamente para ainda dar tempo para o café da manhã. Embaixo do chuveiro pensa que faria bem para seu humor tomar um café da manhã calmo, mas engole de um só trago o suco, dá uma rápida vista d’olhos no jornal e se ressente, em silêncio, por não poder lê-lo em profundidade.
Ao seu lado, o celular apita e faz com que ela volte à realidade: uma amiga perguntando se ela gostaria de sair para fazer as compras de Natal. Maria decide não ter tempo para responder e se pergunta: quem tem tempo ainda para o Natal?
Olha aflita para o relógio do celular e vê que não vai dar para tomar o seu cafezinho. De antemão, já sabe que não há como sua agenda ser inteiramente cumprida.
Tudo bem, conforma-se inconformada! Bola pra frente! Sai andando com a torrada na mão. Percebeu apenas fugazmente o beijo de raspão que seu filho lhe dera na testa. Mas este sentimento se evapora como nuvem em dia de ventania para dar lugar a uma sensação diária, insistente, categórica:
— Não vou dar conta! Não vou dar conta! Já sabe que vai ter que almoçar no escritório novamente.
Mentalmente desenha o trajeto a ser percorrido, atenta ao waze, celular no colo. Ele toca e ela responde: em trânsito! O waze avisa que há congestionamento pela frente. Sabe que, para todos, a procura do tempo é igual. Aceita que vai se atrasar, talvez, uma meia hora até chegar ao trabalho.
Não é senhora do seu tempo e tenta encontrar justificativa pelo atraso. Dirá: Está tudo tão complicado! É Natal!
Com a nítida sensação de impotência, desponta em sua mente a imagem da gruta de Belém, as pacíficas vacas e o burro. Nossa Senhora – mãe, José – o pai. Visualiza a estrela cadente e, na mesma velocidade em que ela se desprende do céu, surge a obrigação:
A Lista!
Faz as contas: “Tenho vinte e três dias para resolver a lista de presentes para o Natal
Será que darei conta?” Indaga-se.