Não sei escrever a não ser sobre uma superfície plana. Antes do computador, escrevia em cadernos sobre uma mesa. Hoje a inspiração depende do meu computador que não se encontra ao alcance do texto que brilhantemente se escreve na minha cabeça.
Acho que escrevo melhor, menos prolixa, batendo, uma por uma, as letras do teclado até formarem sentido, mas, hélas, ausente do meu quarto de dormir, ao acender a luz, o texto brilhante que ocupava as horas em que deveria estar descansando, sumiu! Então, usei – apesar da preferência por um lápis muito bem apontado – a ponta da minha caneta Le Pen para escrevinhar este texto, no meio da noite insone, mal recostada no travesseiro e sem mesa onde apoiar o caderno, este sim, sempre ao lado.
São em momentos similares que me ocorre ser uma louca em busca frenética de um sentido, mergulhando os pensamentos que nadam soltos em águas ora gélidas e paralisantes ou ferventes como as chamas do inferno.
O objetivo daquele momento insone foi criar um texto para o meu site, e, ao relê-lo, pela manhã, a vontade continua a mesma. Por que – e talvez sem importância – levo esta ação adiante?
Pensei: se quisermos nos investigar como escritores, os dois livros que acabo de ler podem ajudar. Um deles de Anne Ernaux, ”A Escrita como
Faca e outros Textos”, e o outro de Rosa Montero, “O perigo de estar sempre lúcida”.
Depois de ler Rosa Montero, saberemos se somos loucos por necessidade da criação pulsante e, depois de Ernaux, saberemos se nossas mentes insanas e insones sofrem a pressão da facada da criação.
Gostei de saber que posso intitular-me escritora, pois em tantos momentos acredito estar louca de tão estranha que me parece ser a realidade na qual estou inserida cotidianamente. A realidade, como acreditamos ser, é uma ficção individualizada!
Assim sendo, louca ou não, gostaria de escrever sobre minha interpretação sobre os filmes que, no meu entender, é claro, tocam por conter enredos contemporâneas que me fascinam: “Pobres criaturas”, Zona de Interesse e Dias perfeitos”:
O primeiro, filma a criação de uma mulher onde um cientista louco implanta o seu embrião abortado – de sexo masculino – em seu cérebro. Nesta condição ela vai se construindo desde os primeiros passos incertos e infantis até o salto alto onde se mantém como uma mulher em toda a sua magnificência.
Sua trajetória no percurso, são diálogos e interações com personagens tipificados, contemporâneos, – apesar de cenários irreais – através de perguntas que faz ao longo de toda a sua trajetória até transformar-se em uma mulher poderosa. Nesse momento, a mágica de sua transformação vira contra o seu criador e, por tabela, contra o seu companheiro que a leva pela mão para conhecer o mundo, este, fascinado, a ponto de levá-lo à loucura por seu comportamento sem travas sociais, o sexo liberto sem culpa, faz com que ela o aniquile impiedosamente.
Quando adulta e mulher empoderada, ela apresenta os mesmos vícios que homens e mulheres carregam: é irada, autoritária e sobretudo vingativa ao transformar o seu criador, o mágico – (Eva não é fruto da costela de Adão?) – em um porco com a cabeça do cientista louco que a concebeu.
Será que ela se revoltou contra um semideus, ao ser masculino que nela habita, implantado em seu cérebro ou mesmo, vai saber, Deus?
O segundo filme registra um gramado verde e florido, vizinho de um campo de concentração onde transcorre a vida pacata e feliz de uma família alemã que precisa usar lenços para tapar o cheiro dos corpos queimados. Não é um filme sobre o Holocausto – no meu entender, – mas uma metáfora que me conta o quanto eu sou alijada das injustiças mortais impetradas pela barbárie do Ser Humano. Não ligo para o meu vizinho!
Minha vidinha é burra em busca da felicidade que não existe.
O terceiro filme revelou, metaforicamente também, um homem cuja profissão é ser um insignificante e perfeccionista limpador de banheiros públicos em Tokio, cheio de vitalidade na sua vida cotidiana, diversificada em pequeninos prazeres ao longo do dia até a hora de deitar-se em seu tatame e acordar no dia seguinte para escovar os dentes, vestir o macacão, pegar as moedas que guarda na entrada da casa, sair no alpendre, inseri-las na máquina que fica ao lado e que lhe trará em troca uma caneca de café. Comer um sanduíche no mesmo banco de um mesmo parque, todos os dias, e se deliciar com as sombras das folhas da mesma árvore. No final da tarde vai ao banho público para depois, na mesma mesa de um boteco servir-se de um copo de água gelada e comida completando sua refeição do dia. Em seus momentos de folga, monta na bicicleta para ir à loja buscar o rolo de filme revelado, deixar o novo e comprar outro. Carrega a máquina fotográfica, volta para casa e escolhe a melhor foto da sua árvore, tirada naquela semana. Passa na mesma livraria para escolher um novo livro que lerá antes de adormecer no seu tatame. Escuta ininterruptamente músicas que só um sensível entendedor conhece.
A beleza deste filme, Dias Perfeitos?
O hábito de importar-se com o Outro que no filme percebemos em fortuitas imagens, simples e sem nódoas. Tão simples quanto escovar os dentes todos os dias. Simples demais!
Os diálogos são liquidificados em sons.
A perfeição da realidade diária, repetitiva, prazerosa é suficiente para amar a vida no que de melhor ela pode nos informar: a noção de que é possível sobreviver a ela e ser feliz assim mesmo!
Precisa de mais?
Nos dois primeiros filmes, vi o nosso mundo contemporâneo em seu aspecto mais intimidante, mais inconsciente do que no passado. Um mundo repleto de mágicos desvairados a definir destinos e criaturas criadas à sua imagem e semelhança.
No terceiro filme vi que não só somos irremediavelmente sós como a solidão um componente da realidade em nada virtual!
O enredo deste filme traz algo de inédito à nossa consciência: o cotidiano injuriado como enfadonho, sem desejos, pode ser uma vida levada à perfeição!