Transcrição
Aos arautos do infortúnio
ordem e progresso
uma reflexão sobre o Brasil
Bettina Lenci
José Ernesto Bologna
…e agora? O que pensar, o que dizer?…
se somos a frustração de não ter sido
nossas ilusões de vir a ser.
Em seus versos tristes, o poeta canta o momento brasileiro. Mais que isso, propõe-se a indagar o tema essencial: O que pensar? O que dizer?
Há brasileiros com medo de ler os jornais. Brasileiros temendo cogitar o futuro.
Brasileiros descrevendo a desgraça visível, pitonisas da desgraça hipotética.
Brasileiros pilhando-se em becos. Sem saída para suas empresas, seus empregos, orçamentos, convicções, esperanças e projetos. Brasileiros já sem perguntas, ainda sem respostas, quase sem destino.
Um povo inteiro sem colocação imediata para a maravilhosa energia que mais caracteriza seu encantador estilo: uma energia construtiva, amável, bem humorada e pacífica que sempre configurou o melhor do nosso caráter, tão injustamente leado ao cadafalso por tramas dialéticas que pouco têm a ver conosco. Uma criatividade lúcida – solta, plena
– que sempre caracterizou a original dignidade com que sustentamos, a suor e sem alarde, os erros dos líderes verdadeiros e os vícios dos oportunistas.
Acima dos acertos e dos erros de seus líderes deve estar a dignidade feconstrutiva de um povo. Aqui, sim, há um cerne a discutir. Assim como a fome e a ignorância, a morte também não negocia prazos. Já ficou bem claro que nós sabemos nos desentender. Qualquer um sabe. Que muitos dentre nós dominam as artimanhas do devorar recíproco, do proteger mútuo, do pactuar leve, do cobrar pesado.
Alguns acusam nossa origem. Tomara estejam errados. Se estiverem certos será muito difícil retornarmos cinco séculos para consertar as coisas. Eis um primeiro princípio: A um povo em perigo não basta que os fatores apontados como causas de suas angústias sejam verdadeiros, é preciso que os fatores sejam reversíveis.
Ainda que a custo. À custa de esforço, perseverança, otimismo e criatividade; à custa de imitação esperta, de originalidade ousada, mas é necessário que o filósofo de causas pratique a misericórdia ética de não apontar causas perdidas no tempo, mortas no espaço. Causas cujo acesso, impossível, só faz deprimir os que acreditam: Por favor, teóricos da filosofia política, por favor elites intelectuais, magos econômicos, elites financeiras, por favor sindicalistas extremados, operários argumentativos, maiorias, minorias, por favor não nos ofereçam a ilusão de causas inacessíveis apenas para ficarem bem com seus intelectos viçosos. Nós somos apenas gente!
Gente que deseja ter pelo que lutar a cada dia que raia, a cada filho que nasce, a cada trem que se atrasa, a cada ônibus que colide, a cada rio que transborda, a cada protesto em cartório, a cada cheque sem fundos, a cada salário atrasado.
Ainda que teoricamente verdadeiras, não precisamos explicações que envolvam variáveis inacessíveis. Para os muitos fins da vida e da morte, essas causas simplesmente não existem. Abandonemos, por favor, as causas que, se um dia causaram, não podem ser revertidas, a começar de hoje! de agora! no máximo amanhã! Porque não há mais tempo; e porque o espaço está cheio de crianças que choram, de velhos calados, e de adultos atônitos.
Posto um princípio, aflora uma pergunta:
A corrupção, a falta de caráter e de consciência, o abuso de poder por parte das elites e dos cartéis, a pressão inflacionária dos especuladores, o banquete dos usuários, seriam, também essas, causas impossíveis de reverter?
Caímos, bem a propósito, diretamente no campo de um estudo misterioso: a psicologia da consciência. Consciência em duplo sentido, consciência por estar acordado, e consciência por acordado, estar em paz com os valores humanos que permeiam as relações entre os homens. Seria, tal quadro, se causal, reversível? É possível mudar o corrupto, reformar o estelionatário, recuperar o demagogo?
Certa vez perguntaram a Lao Tse, o grande taoista: – O que é um homem mau? – e ele respondeu: – É um homem que precisa de um homem bom. – Então argüiram: – E um homem bom? – Ao que Lao Tse respondeu: – É um homem responsável por um homem mau.
Todas as sociedades já lutaram, e lutam em diferentes graus, com o mesmo problema. Elas praticam três evidências:
Incentivar, o bom homem disponível, como medida equilibradora,
Restringir, o mau homem atual, como medida provisória,
Educar, o homem futuro, como esperança definitiva.
É realmente difícil imaginar algum procedimento lúcido que não habite ao redor dessa velha, mas sábia maneira:
Trabalhe muito, incentive os amigos, eduque as crianças,
Sustente os velhos, restrinja os ladrões, acalme-se, descanse, divirta-se, principalmente, acredite.
Deus gosta muito de gente assim.
Mas para isso é preciso poder. E para aglutinar poder suficiente é preciso consenso. Se o Mal fosse esperto – e é esperto! – saberia que a coisa mais importante a sabotar seria o consenso – e sabota!
Sabota exatamente no ponto mais frágil, e convincente, de todos:
Oferecendo base empírico-racional, portanto base dialética, para que a confiança construtiva no consenso se abale. Ou seja, mostrando, com fatos, a “razão” de quem critica. Mas agora é necessário ir mais fundo! Mais do que nunca, é necessário ir além da razão. Chegar até o Propósito. E perceber a incongruência essencial contida na ilusória veracidade das premissas da razão.
Descobrir que aqueles fatores realmente capazes de alavancar qualquer reconstrução nacional – a cooperação, a fraternidade e o ânimo – estão além da razão, e ficam mais e mais neutralizados na medida em que a sociedade isola seus líderes em função dos erros que cometeram ou que cometem. Eis o paradoxo essencial, a ilusão primária.
Diz-se que, realmente, o plano não deu certo, que, realmente corrupção medra e campeia, mas que “real” é esse? Que tipo de “real” é esse que, ainda que realmente real, só o que faz é acirrar o isolacionismo entre nossas classes, incita-nos a chafurdar em intermináveis acusações mútuas, irrita-nos, revolta-nos e deprime nossos melhores ânimos. Ora, a realidade inclue outras coisas! E bem outras!
A realidade é feita de oportunidades reconstrutivas. É feita de sugestões concretas, de participação ativa. É feita de aproveitamento consciente dos erros do passado. A realidade é um experimento objetivo, levado a efeito entre adultos a partir de uma esperança consciente, sonhada entre irmãos.
Essa é a realidade! A realidade dos amadurecidos, dos silenciosos, que ocultos na história, sustentam a estória
Por isso diz o poeta:
Se tanto clamas
e reclamas – sem parada –
esperanças de amar e progredir tão pouco ensejas,
pega minha mão, dorme a meu lado,
eu vou sonhar a solução
para que a vejas
A certa altura, mais importante que tudo, foi recompor a ordem democrática. A partir dai – e em nome da mesma – estamos vivendo a dura tarefa de recompor nossa capacidade de sermos cooperativos. Naquela época era proibido reclamar do “resto” porque a democracia ainda não estava aí, porque a liberdade ainda não era disponível. Agora nós estamos tratando daquele “resto”, e vendo que aquele “resto” por tanto tempo esquecido, era quase tudo. É mesmo muito duro de obter o resto! Mas precisa ser conquistado. E vejamos:
E absolutamente necessário que acima do erro e do acerto, conserve-se a nossa convicção, de que a lucidez cooperativa, a renuncia às “razões” – muitas vezes “reais”, eis o engodo – são, nesse momento da vida nacional, muito mais importantes que longos discursos pessimistas, verdadeiras brechas escancaradas aos oportunistas, aos eternos situacionistas.
O Presidente é jovem demais. O Presidente pecou por precipitação e ímpeto. O Presidente, mesmo a caratês, subestimou a inflação. O Presidente irritou as elites. O Presidente achatou os descamisados. O Presidente está sem interlocutores no front. O Presidente perde interlocutores na retaguarda. O Presidente concentrou poder em excesso nas mãos de adidos inábeis. O Presidente traiu a Educação e a Agricultura. O Presidente não consegue encarcerar os larápios do INSS. O Presidente não expulsou os marajás. O Presidente perdeu o controle sobre os juros. O Presidente não consegue conter os jogos de influências.
Mas o Brasil elegeu esse Presidente. Não elegeu outro. E o Brasil deve ser mais importante que as infantilidades vingativas, as pequenas brigas, as dialéticas de algibeira, as “realidades da razão”.
Nós não queremos a “razão”. A “razão” é a peste, a “razão” é a morte. Essa mesma “razão” escravizou os negros, matou índios, elaborou o marxismo, construiu o Muro, incinerou judeus, envenenou os rios, ardeu as matas. Em nome da “razão” processos se estagnam, crianças não florescem, homens não trabalham, velhos apodrecem, pessoas não sorriem, projetos não são propostos.
Nós precisamos, a qualquer custo, libertar-nos dessa maldita armadilha sócio-psicológica.
Precisamos, urgentemente, desenvolver tipos especiais de liberdade:
Liberdade para cultivar e expressar a motivação construtiva e para nos permitirmos ser, por ela, impregnados.
Liberdade para propôr a evidência, e lutar por ela, sem vergonha da ingenuidade. Liberdade para delatar, sem horror, o quão elementares são nossas soluções, se quisermos optar por obtê-las dentro do espírito da cooperação. Liberdade para perceber o quão impossíveis são essas mesmas soluções se tentarmos buscá-las sem um tal espírito. Liberdade – inclusive e principalmente – de recusar o jogo neurótico de um falso reequilíbrio catártico, que só fazem estagnar-nos em acusações enfadonhas, delações mútuas, discursos de bêbados, lendas de bar.
Devemos querer a liberdade útil! Incluindo a liberdade para renunciar às ilusões da liberdade inútil!
Liberdade para sonhar o futuro. Para querer ver, vivo o sonho; nas coisas, nos fatos, nas gentes. Liberdade para falar bem, para imaginar positivamente, liberdade para acreditar.
O Brasil não quer a liberdade de Ser. O Brasil quer a liberdade de Querer Ser. Não quer a liberdade de ter pronto, quer a liberdade de tentar fazer. Não deve desejar a liberdade de quem encontrou, apenas a liberdade de quem busca. Nós não encontramos um plano milagroso, talvez tal plano nem mesmo exista fora das velhas e conhecidas leis da vida: o trabalho, a honestidade, a fragilidade, a boa vontade, a participação compreensiva. Nós não encontramos um ouvido sensato na negociação da dívida, não encontramos investidores sensíveis às nossas potencialidades, mas nós devemos seguir buscando, nós precisamos insistir no sensato e ignorar, simplesmente ignorar, o ilusório. Muitos brasileiros discriminam perfeitamente o que é sensato, simples, ativo, efetivo, do que é ilusório, polêmico, complexo, justificativo. Até agora esses brasileiros limitavam-se, por preguiça sem dúvida, a sustentar a insensatez dos falsos líderes. Agora esses brasileiros precisam falar. Precisam agir, precisam insistir nas evidências, nas pequenas evidências, nas grandes evidências, contribuir no cotidiano, ensinar, aprender, às vezes forçar, um pouco, um pouco mais, mais ainda, ameaçar mesmo, ralhar, punir, comutar, reaproveitar. Isso é a democracia, são esses, não outros, os estreitos caminhos da liberdade.
Só então, o espírito da nossa gente poderá conduzir a nossa miséria à mais plena fartura. Porque nós temos tamanho, porque nós temos volume, porque nós temos mercado, temos gente, porque nós somos inacreditavelmente pacíficos, porque nós somos essencialmente cordatos e solícitos. Mas tudo isso não aflora. Nada disso aflora. Então pensamos que não somos, pensamos que não temos. E, de pensar, não somos, e, por não ser, não temos. Eis a maldita espiral da decadência. Precisamos, sim, libertar-nos dessa dialética maldita que aprisiona a Mente Brasileira no vício ingênuo das indulgências mútuas, sempre paradoxalmente colaterais às delações recíprocas. Parar com isso! Já! Perceber o suicídio que há nisso.
Ainda que tenhamos “razão”, devemos, agora mais que nunca, superar esse estágio, primário mas importante, da maturidade real.
Devemos praticar, hora a hora, dia a dia, gota a gota, um exercício mais lucrativo que a razão pura, o exercício da cooperação madura, que envolve o perdão – sim senhor, o perdão – que envolve o movimento do mais sábio caipira a repetir em sua vida repleta de durezas:
– Num’tem ‘portância! – e seguir, com sua fé indestrutível, apesar do filho morto, do cão louco, do cavalo aguado, apesar do bezerro doente, apesar da vaca roubada. Ante toda a desgraça, ele diz: – Num’tem ‘portância! – esquece-se, sim, de um aspecto provisório, hoje infelizmente importante, restrinjir os ladrões – mas segue, segue sempre, como sempre seguiu, o nosso Brasil querido, porque ele sabe que o que lhe resta, sempre e sempre, é manter dentro de si a força do seu ser maior, seu vir a ser supremo – e exequível, exequível, exequível, sim senhor, e porque não? Os arautos do infortúnio que o digam e que, ao não dizer, ao menos por ignorar, nos sigam.
Bettina Lenci
José Ernesto Bologna
Sensibilizado com este texto, envie-o para mais 10 brasileiros sensíveis
Corrente da brasilidade
Desing Gráfico
Guto Lacaz
novembro 1991
cópias desta edição pelo tel. : 419 0383