Um dia, uma gata deu cria na gaveta do armário do meu pai, ele não viu e fechou a gaveta, amassando um dos filhotes. O filhote era preto. Havia sangue nas camisas brancas, não muito. Conclui que meu pai não era um assassino de gatos, pois havia fechado a gaveta de noite, a luz apagada. A gata sempre prenhe, outras vezes, enchia a lavanderia de gatinhos que de um dia para o outro desapareciam.
Vim a saber, bem mais tarde, que era praxe afogá-los imediatamente após terem sido paridos, Aparecida encarregada de tal ato. Disseram-me que assim morriam sem saber. Lembro ter respondido com um ponto de interrogação, apagado da memória até este instante e percebo que era a vida que estavam me ensinando. Em contrapartida a este estranho acontecimento, existiu Pipoca, presença viva de uma Existência ao meu lado. Pipoca era vira-lata de cor indefinida que um dia apareceu em casa e no seguinte pariu seus filhotes. Estes não foram afogados.
À medida que cresciam, começamos a observar que cada filhote era filho de um dos cachorros que vagavam na redondeza. Havia um sem rabo, outro preto e branco, outro amarelo, ainda outro de patas muito curtas e este fato salvou Pipoca do desterro porque se concluiu que ela era especial, não só por nos ter escolhido para sermos seu lar, mas por todos seus filhos serem filhos de pais conhecidos. Outra existência, que ora salta ao meu lado, é da Aparecida, nossa empregada diarista, muito magra e miúda, que montava lindos vasos de flores compradas na feira e que permaneceu conosco por um tempo que não lembro mais quanto.
Mas é um cheiro que traz às minhas narinas dilatadas a existência da eternidade: os biscoitos de chocolate com amêndoas raladas misturadas na manteiga e açúcar, que minha avó fazia. Pipoca, Aparecida e minha avó, nenhum dos três jamais morreria, porque, simplesmente, eu os amava.
Texto extraído do livro “363”