Como entendo a filosofia vigente de não mais querer carregar coisas consigo ou melhor, juntá-las, sem um objetivo. É o que fiz ao diminuir minha biblioteca pela metade ao mudar de moradia, maior para menor. Apesar de vir diminuindo meus pertences a cada nova mudança de casa desde o século passado. Chego hoje, surpresa, com quase nada, mas ainda suficiente para me desfazer delas.
Nada mais me faz falta ao remexer o lar antigo e colocando em caixas o que restou. Verdade que em cada uma das gavetas que contém um determinado tipo de “coisa”: roupa de cama em uma, de mesa em outra, de prateleira com objetos, mesinhas e mesões, lembro das que foram dadas, vendidas ou jogadas fora sucessivamente. Estas que não mais existem é que contavam a minha história, lentamente, mas progressivamente.
Amei todos os objetos em hora determinada. Quando meus pais morreram, primeiro um no século passado e 25 anos depois o outro, em cada um destas efemérides a casa onde morava entulhava-se de lembranças de um tempo que era. Destas fui me desfazendo lentamente à medida que meus progenitores iam virando pó da lembrança.
O capítulo sobre a biblioteca chega bem diverso.
Ao separar criteriosamente os livros da estante, percebi que foi a primeira vez que eu carregara comigo os interesses ainda não realizados. Anos e anos a fio.
Tem-se nos livros, – mais que nos objetos da família, – íntimos companheiros. A cor, capa, rasgos, amarelados, feios e bonitos (geralmente os feios foram os livros manuseados e deteriorados, levados para encadernação e não reencarnação) a fim que durassem ainda mais tempo na estante porque amigos na solidão pelas lombadas – um dia deixei a janela aberta e a chuva os deixou com marcas onduladas que inscreveram-se para sempre nas suas páginas – lá estavam até hoje.
Passaram os livros da minha infância nos contos aterradores alemães, a juventude nos exemplos do Tesouro da Juventude, ou meus interesses voltados exclusivamente para o estudo da arte em todas as suas expressões desde então.
Renovadamente impactante foram os livros que meu pai dedicava à mim, resultado dos seus interesses que teria gostado fossem meus também. Fascinada pela diversidade dos Ex libris guardarei os herdados do meu avô e sua filha. Guardei todos, ilusoriamente pensando em filhos e netos que, longe da lembrança genética, procurarão no Google suas dúvidas para redações escolares. (Uma frustração sabida, mas mesmo assim continuarei insistindo por falta de acreditar – secretamente- em conhecimento via Internet). Transportei de casa em casa, para eles, revistas nacionais cujos temas de impacto mundial remetiam às transformações politicamente fulcrais desde quando eles sequer eram um projeto. Não deu certo!
Foi assim que as prateleiras da biblioteca foram aumentando a medida que o mundo externo começava a influenciar modos, valores e crenças. Livros sobre misticismo, desde pedras curativas a massagens aiuverdicas, teorias de como educar filhos em tempos mutantes, dicionários sobre símbolos, em outras línguas e vários em português. Guardava-os pelas ilustrações antigas. Livros de personagens heroicos, de ficção com fundo romântico resvalando em períodos históricos encadernados em couro legitimo além de várias coleções inteiras, volumosas, herdadas. Lembranças e informações esparsas tão impregnadas que delas não consegui me desvencilhar apesar dos anos de análise para entender porque os deixava quietos em minha mente e alma. Geralmente tornavam-se pesadelos ao passar dos meus olhos, cada vez que os mudava de lar: vencer a vida do dia a dia era tão mais mandatório do que a frustação em satisfazer uma curiosidade ou vontade de saber.
Enfim, alguém interessado em assuntos vigentes do pós-guerra, lá encontraria a resposta sobre provavelmente todos os assuntos para aquietar suas dúvidas sobre o Tempo que passa.
O pó da cidade grande foi se acumulando entre as páginas e contracapas, religiosamente pincelado todos os meses até o dia de hoje, momento certo para me desfazer, como dizem – desapegar-me. As lembranças não mais me acompanharão como visualização de um sonhado futuro, exemplificado em cada lombada de livros não lidos.
Hoje, ao empacotá-los em muitas caixas – não gosto que mãos estranhas mexam em minhas recordações – separei o passado dos meus interesses atuais. Mudam comigo apenas os assuntos, reduzidos a quase nada, mas determinados a serem devassados nas entrelinhas. Quem gosta de procurar nos sebos o livro que o atrai, os encontrará livres de mim e, desejo que continuem a sua trajetória ao fazer parte de lembranças alheias.
Moral da história: acumulei em livros meu longo passado e amanhã levo o meu curto porvir. Levo apenas o futuro com vontade de ler minha vida escrita por pensadores consagrados de hoje e de sempre.