Quem ler a carta vai se perguntar do porque do título, mas precisa primeiramente ler o que o autor quis dizer. Eu a encontrei, por acaso, amassada na lixeira da minha colega de escritório. Essa empresa nos confina em baias só identificáveis por que o ocupante deixa – ao sair do escritório – uma flor murcha ou uma de plástico num vasinho com grama, foto de filho, uma selfie com amigas e amigos. Foto de marido ou namorado é menos frequente porque compromete. Tudo isso fincado com um alfinete de cabeça colorida ao lado ou em frente ao computador. Também é possível identificar um cartão de feliz aniversário com nome escrito, as vezes foto de um bebe recém-nascido, filho ou sobrinho querido. É a personalidade da usaria da baia, exposta, sem compromisso.
Fiquei curiosa e abri a folha de computador amassada, sem vergonha de estar mexendo em lixo alheio.
Formatei–a novamente, iniciei a leitura.
“Querido M…” (não posso aqui escrever o nome pois estaria identificado não só o remetente como o destinatário). O remetente, confirmei, ao baixar meus olhos para o final da carta, era da colega ao lado. Deduzi que o M…. seria o seu ex-marido.
“Não encontro palavras para lhe contar sobre a minha dor. Depois que você saiu de casa e disse não mais voltar, ainda lhe perguntei se havia outra mulher em sua vida. Não sei se negou para que eu não sofresse mais , ou se falou a verdade. Ao fechar a porta de casa, não consegui pensar em nada, senti apenas um buraco negro na minha cabeça. Nem chorar consegui por conta do abestamento em que me encontrava. Somente à noite, ao deitar, percebi que iria dormir sozinha para sempre.
Chorei a noite inteira até adormecer de manhãzinha. A dor era apertada, não passava pelo funil da minha vida junto à você. Não conseguia respirar e pensei em morrer ou que morreria sufocada. As imagens que passavam eram sentidas intensamente no corpo; lembranças e a necessidade absurda de ter v. ao meu lado naquele momento.
Seguido ao choque da separação, veio o alivio, sentimento que também não entendi. Dai a ficha caiu: você não voltaria mais.! Desesperei-me e perguntei como continuar sozinha e desemparada. Em seguida tive raiva, muita raiva: por que v. me deixou? Com passar do tempo, já consegui voltar ao mundo e à vida entorno de mim, sempre em busca do porquê? Minhas amigas, com a intenção de ajudar-me diziam: “isso vai passar! Dê tempo ao tempo”. Retrucava que elas não entendiam o que é um amor perdido. Mas vejo hoje, como tinham razão. Passou!
Passou-se o tempo e ontem finalmente assinamos o divórcio. Eu não sei mais o que v. disse, se foi uma palavra, uma frase ou meu olhar discriminatório procurando compreender como fiquei tantos anos com v. Não foi uma decepção, mas um sinal de despedida de meu amor. Meu coração se acalmou, minha respiração amainou e percebi que não o amava mais. Você passou para o desconhecimento. Até soar, preciso, este sino sonoro do momento.
Por muito tempo, ainda esperava voltar a dormir com você, corpo a corpo, mistura de desejo e intimidade por tantos anos compartilhada. Queria muito te contar tudo isso porque acho que v. vai ficar bem, sabendo que eu já não o amo mais. Deixou a minha vida como quando eu não sabia da sua existência aqui na Terra.“
Assim minha colega assinou o seu nome, sem beijo nem abraço. Talvez a carta tivesse a intenção de machucar, por isso estava no lixo.
Meu pai separou-se da minha mãe quando eu era adolescente e lembro que a culpei por isso. Não conseguia entender porque soluçava trancada no quarto, esbarrava entre as paredes da casa suspirando e repetindo sentir uma falta imensurável do meu pai.
Ao ler a carta de S… compreendi o sofrimento, a dor, pela qual certamente minha mãe também havia de ter passado. Gostaria de saber, hoje, se a do meu pai e o de M… se aproximam da descrição que S… faz ao separar-se de seu marido e amante.
Amassei o papel com cuidado. Era uma dor anônima que a noite ia ser incinerada no lixo de um caminhão.
Muito bonito este texto Bettina!
Querido Tommy.
Obrigada pela sua leitura e frequência no meu blog.
E como inventei uma história ligada nos últimos acontecimentos em minha vida. Ser escritor é isso: inventar o cotidiano “na boca” de uma terceira pessoa.
Sou aprendiz ainda mas já está dando para algumas pessoas gostarem.
Beijo saudoso.