Volto do cemitério onde enterrei Eliza, querida amiga. Ela era bem mais velha do que eu e sei que vou sentir sua falta todos os dias.
Eu a ouvia, atenta aos seus olhos que mudavam de cor. Ora me pareciam azuis, ora verdes, ora violetas. Talvez uma cor para cada estado de espírito. De quando em vez eu conseguia discordar de sua maneira de interpretar o mundo e as relações pessoais, mas até hoje não sei se as lembrava depois de nos despedir. Sentia-me intimidade, mas não enfraquecida, apenas a ouvia. Detalhes mínimos compunham sua importante elegância em preto e branco como a composição dos objetos no seu apartamento, idem minimalistas, adepta do menos é mais que seguia rigorosamente, mesmo antes de se tornar moda. A bordo do seu caixão, lamentando todas as pessoas perdidas que amei, lembrei-me de uma em particular: Stella, outra amiga igualmente muito querida que, naquele momento, ela e Eliza tomaram o espaço da ausência. Também estive presente em seu enterro há alguns meses atrás.
Stella e Eliza acho que beiravam a mesma idade, mas, eu continuava, entre elas, a de menos tempo de vida.
Stella e Eliza eram parecidas em sua capacidade de expressar-se com a mesma inteligência. Formulavam apreciações para situações e pessoas com uma ponta de ironia precisa e divertida. Suas respostas ligeiras me faziam calar porque sábias. Ambas me intimidavam ao compartilharem uma visão de mundo bastante próxima de uma realidade que intuía ser possível. A compreendia, porém por falta de tempo vivido não podia confirmar ser minha.
A realidade não é nem uma verdade única e nem para todos uma só! Nos debruçamos para vive-la, esta sim, múltipla ao infinito. Para Stella, filosoficamente, uma ilusão sem nenhuma dúvida. Para Eliza a ilusão, porém construída sob uma padronagem social. Stella agia, na prática, seu entendimento ser a realidade em constante mutação enquanto Eliza manteve uma realidade dentro da qual nunca se manifestou infeliz em seu papel de esposa e mãe em busca da independência, contudo sim, em relação aos seus anseios internos não realizados. Já Stella, separada, jurou não só nunca mais se casar como seguiu autossuficiente até o fim da sua vida.
Em comum, o gosto pelo belo e apurado decoravam sua casa. Stella multicolorida com velhos móveis e objetos catados aqui e ali. Eliza morou praticamente a vida toda no mesmo lugar enquanto Stella em dezenas de ambientes diferentes. Eliza deleitava-se com concertos, antiquários e exposições de arte em Londres e Nova York enquanto Stella, apesar de dividir os mesmos interesses, porém os desfrutava em visita à Índia e à Amazonia Profunda. A vontade, para ambas, era o deslocar-se de um lugar para outro. Stella tinha particular prazer à mesa, já Eliza comia sem vontade porque tinha horror de engordar. Ambas eram uns palitos de magras. Sobressaiam-se ainda em outros pontos em comum: as duas cientes da força necessária para sobreviver às demandas imperiosas da Existência. “A vida não é fácil”, encerrava a filosofia de vida das duas. E esta convicção, interpretada como fato é que constrói as relações afetivas entre amigas.
“A vida não é fácil” é uma expressão que conforta, pois reconhece a demanda da força de vontade para sobrepor a sua complexidade. É nesta encruzilhada que a amizade se consolida e cada um, separadamente, mas em paralelo, segue sua estrada. Nas entrelinhas das pequenas virtudes encontra-se a graça e amparo dos amigos ao aceitarem nossos defeitos, aplaudir nossas passagens vitoriosas e socorrer as lágrimas nas doloridas passagens. Eliza e Stella tinham pouca inclinação para alimentar o vício da infelicidade. Entendiam que, igual à uma constelação de estrelas, a felicidade fica longe uma da outra, assim, cada momento preenchido de um sentimento de prazer fica a quilômetros de distância do outro. Ponderavam ser possível ser feliz apesar dos acasos, raros, mas vívidos no corpo e sentimento.
Foram-se completando o seu ciclo de vida. Eliza desejava ser cremada, mas os vivos desrespeitaram sua vontade obedecendo ao ritual da sua religião que o proíbe. Por uma vez ela não teve como contestar. Já Stella pediu pela cremação e foi atendida em sua última vontade.
Na vida de todos nós, a perda abre um buraco onde jazem, no chão de asfalto da alma, outros mortos. Não há pedra, pedregulho, piche que o tampe pois outros ainda virão. Eles se alojam em algum lugar deixando um rastro inconformado atrás de si.
Caso improvável, mas, se Stella e Eliza ressuscitarem no céu ou inferno, – mais provável no purgatório – gostaria que se lembrassem de mim!