Quarta-feira de cinzas é o dia da introspecção sobre a farra solta, sem medidas para ser feliz. Mergulho na saudade do brilho, das cores e marchinhas. Lembrança da alegria e sorriso aberto sem motivo a não ser o do momento pleno e inconsequente. Quarta feira de cinzas é o dia seguinte dos acordes que ressoam na cabeça como a cuíca do tocador. Cinza é o dia seguinte do Carnaval. História antiga – acho que nascida em Veneza – onde máscaras escondiam a identidade do usuário e assim este podia dar vazão à promiscuidade ou a hábitos dissolutos, como se dizia antigamente. Eram dias nos quais pobres e ricos se entregavam à bacanal e, passado o momento, se apresentavam como pessoas sérias e circunspectas. Uma invenção deliciosa: ser o que não se pode ser todos dias!
Fotos: Bettina Lenci (carnaval década de 60)
Carnaval é uma festa universal e acho que ela se expressa diferentemente conforme o temperamento de cada um dos países onde acontece. Uns acham-se fantasiados nos seus trajes folclóricos; outros com penas e paetês, mas é comum a todos, homens travestidos de mulher, enfermeiros, diabos, bruxas e outros gênios do mal, talvez a expressão saudável do medo no inconsciente coletivo da brincadeira.
No Brasil impera a criatividade e a adoração ao corpo nu, ao tropicalismo, percepção das praias, sol e índios. Invariavelmente presente no desfile das escolas de samba, a nossa religiosidade sincrética, os passistas, a ala das baianas e a bateria ensurdecedora sem concorrentes, expressão maior da musicalidade e única no mundo. O samba só nosso, traduz em brilho e letras, as raízes da nossa pátria. O nosso País, atravessando o Tempo uma vez por ano, além de ensinar história ludicamente – o que a escola das crianças não faz – ensina, melhor do que qualquer grande empreendimento – como fazer milhares de foliões estarem a postos, na mesma hora, vindos de lugares espalhados Brasil afora, cada bloco fantasiado igual, cantarem a mesma música no compasso e tom correto, a canção treinada, cantando palavra por palavra do samba enredo.
Dos desfiles nos Fords T com as melindrosas vestidas à la Charleston abanando leques para a plateia plebeia na calçada e do carnaval de rua foram surgindo as escolas de samba, aguerridas concorrentes, mas todas elas evoluindo em imaginação e técnica. A história e a política do Brasil apreendidas nas letras das músicas e fantasias datadas apesar de não seguirem a História com exatidão cronológica, tudo orquestrado à perfeição! Tempos idos, cada escola apresentou a sua versão sobre a época do Império. Sob os chapelões, negros portavam perucas brancas de algodão que teimavam em não ficar no lugar, combinando com a roupagem usadas na corte de Luís XIV, sapatilhas cobertas de lantejoulas e grande laços. Houve carnavais cujo enredo reportava-se à época colonial, os portugueses com botas de plástico até os joelhos misturados com bandeirantes e sertanistas, a floresta de papelão verde, profusa, a ser desbravada. Presente a miscigenação, os casarões barrocos e figuras de Aleijadinho de papel machê pintadas rusticamente. Damas e vilões. Cabarés ao lado de igrejas, oxuns e oxóssis evoluindo nas danças de terreiro invocando os espíritos. O gosto por escravos acorrentados e iluminados que demonstravam sua submissão ao invasor levando para os navios de isopor, velas ao vento, as nossas riquezas para” terras estrangeiras”- o refrão, como tema central aludindo ao protecionismo vigente à época (anos 60/ 70) quando o petróleo era para ser só nosso ou a máxima: a saúva acabava com o Brasil ou o Brasil acabava com a saúva” ao homenagear Madame Curie. A história da industrialização do País nos foi contada através de chaminés soltando fumaça, rodas produzindo energia, trens montados em carros alegóricos, aumentando de tamanho e altura, misturados às índias com enormes cocares, palhaços de fraque, águias e gaviões, a natureza exuberante, metrópoles e dinheiro jorrando. Sempre presentes as mais lindas mulatas com seu samba no pé, mulheres praticamente peladas para o delírio dos estrangeiros vindos especialmente para vê-las. O conjunto, porém, tecnicamente ainda produzido empírica e toscamente. Nos recentes anos, as escolas ousaram lidar com a nossa pobreza e como marco da crítica social, ela foi representada com um Cristo nu coberto por andrajos esfarrapados e famintos e favelas caindo. Foi censurado e a escola, como protesto, maliciosamente cobriu o Cristo com um véu transparente. É sintomático o fato de que, a partir daí, livres da proibição, a ambivalência entre os temas críticos do Brasil são tratados com um luxo cada vez mais assombroso. Genialmente expressando o futuro através do emprego da tecnologia de ponta, o Carnaval das escolas vem criando um espetáculo grandioso, – grandioso é a única palavra que encontro para enaltecer a criatividade intrínseca ao povo brasileiro. As escolas de samba do século XXI se globalizaram! Sinal dos tempos e vontade de todos os brasileiros, – ainda a ser cumprida! Para mim esta é a nossa realidade: ambivalências e contradições.
Por que conto esta pequena e provavelmente imprecisa historia? Porque, desde sempre, vi no desfile das escolas de samba, o Brasil alegre, bem-humorado, gentil e, como pano de fundo, o estranho contraste combinado com a riqueza e a real pobreza ao acordar na quarta feira de cinzas. Conto esta pequena história porque sei que há uma verdadeira contradição entre o desejo e a realidade: o sonho de Brasil grande expresso com luxo, intensamente colorido e brilhante que corte alguma do mundo jamais viu contrapondo com uma inocência maliciosa vibrando nos acordes interiores de cada sambista. Há a alegria eufórica de poucas horas convivendo com o normalmente difícil dia a dia de milhares de carnavalescos do momento. Por poucas horas, em uníssono, todos brasileiros, de norte a sul, amam o Brasil. Gosto do Carnaval em todas as suas matizes, inclusive se um observador vê a promiscuidade como inerente à balburdia do carnaval. O saudável é que nossa cultura paira, por alguns dias, absolutamente livre da hipocrisia. É a liberdade proibida, livre. A liberdade cantada em decibéis humanos que não nos é permitida o ano inteiro. É fascinante a alegria comportada que se desamarra, genuinamente, de dentro das pessoas. Ela explode sem rubor e consideração para com qualquer preceito religioso. O sentir encalhado ecoa em alegria altissonante. É ele que solta o primeiro grito. O grito da turba. O grito no contágio da pele. Todos iguais e unidos na mesma sintonia. É na expressão do Carnaval que podemos sentir o País palpitante que somos, mas não sabemos como governar, – a exemplo das escolas de samba, – belo e rico, ao mesmo tempo com consciência da panela vazia e do filho sem escola e doente sem atendimento.
Mas, finalizando e talvez escrevendo aqui a antítese do Carnaval, chega a simbólica quarta- feira de cinzas. As cinzas significam a vida incinerada e, em todas as civilizações que festejam a alegria, a morte é venerada. Um rito de passagem, um momento de circunspecção. Gosto disso por serem – alegria e cinzas – lados de uma mesma moeda. Para mim, somos um conjunto de humanidades expressas livremente enquanto dura o tempo do Carnaval. Não há igual!
Fotos: Bettina Lenci (carnaval década de 60)