Nos amarelados álbuns de couro, com as fotos deslocadas do lugar onde foram coladas, cheiro de mofo de dezenas de anos que guardou sua história, descobri a foto de uma charrete: eu e a família de férias em algum lugar bucólico.
A charrete eternizada, claro, parada no tempo! O cavalo esquálido conduzido por um senhorzinho tão faminto quanto seu cavalo.
Um momento paralisado em uma ação que se pressupõe feliz.
Charretes têm esta imagem na nossa memória! (ao menos na minha).
Antes da motorização da humanidade, a locomoção era realizada de várias formas e já então eram símbolos que falavam por si. Distinguia-se a carruagem da charrete pelo nível social e financeiro do seu dono.
As carruagens, de madeira nobre, artisticamente incrustadas de ouro ou apenas charretes construídas caseiramente levando alimentos para a feira na aldeia. Mesmo as charretes que, ao badalar da meia-noite, viravam abóboras, todas elas tinham o mesmo uso: transportar pessoas e mercadorias. Lembremos que o automóvel é uma invenção do início do século passado! Sim, o tempo corre, mas a humanidade continua a se desenvolver lentamente se comparada aos milhões de anos para chegar até aqui.
Acontece que a Fantasia e a História nos levam a idealizar, sem nos apercebermos,que na época das charretes e carruagens havia a mesma distinção entre mais pobres e mais ricos e que nada mudou. Seria hoje como um rico guiar um Porsche, Ferrari ou Lamborghini e o menos favorecido guiar um Fusca ou Kombi.
Entre os donos de carruagens, o condutor com destreza dominava de quatro a seis cavalos negros ou brancos, usava cartola e libré (paletó com botões dourados) e seu passageiro rendas e babados. Já no campo que alimentava a cidade, o condutor estava vestido com trapos e o cavalo não era nada mais do que um único burro pardo, cansado.
Não há como não fazermos algumas distinções: charrete evoca lembranças de férias com os pais, brincadeiras ingênuas da época infantil consagrada feliz. Passeios para cachoeiras, inseguramente chacoalhando pelas estradas de terra. Já a carruagem evoca despeito, inveja e maledicência, o mal incurável do mundo.
Deixemos sonhos, esperanças, fantasias e realidades históricas de lado. Estamos no Brasil, século XXI. Vivo na maior cidade do País e não me conformo com a pobreza embaixo das pontes, com colchões e cobertores, garrafas pets largadas sob arcadas, roupa dependurada nas cercas das grandes avenidas. Porém olho com afeto para os carroceiros. Sem cavalos e sem burros, puxam suas carroças com a força do muque. Curvados, usam a dinâmica natural do corpo que os impulsiona para frente. Aqui vejo pobreza sim, claro, mas imagino menos do que nas “construções civis” sob as calçadas, barracos cobertos de plástico preto.
Meu olhar generoso para com o carroceiro é porque estes pareçem mais dignos: trabalham durante o dia.
Ao bisbilhotar dentro das carroças, vemos azulejos de demolição, tacos de madeira, tampas e vasos sanitários, ferros torcidos, papel de embrulho pardo, chuveiros, sofás e tantos outros matérias que um dia tiveram sua função.
Os carroceiros, contudo, não são catadores de lixo, digo, catadores dos lixos para comer, nem consideram, acredito, ser lixo o desperdício de “coisas” que não servem mais para ninguém. Ganham sua ração diária vendendo as tais “coisas” para becos de reciclagem e o resto usam para as próprias casas de brilhante engenharia – a sobrevivência cria obras-primas frente às circunstâncias adversas – ou vendem os matérias para o vizinho tão pobre quanto ele, mas que compram com o dinheiro que arrecadaram pedindo esmolas.
Numa classe acima dos carroceiros temos as Kombis e Belinas ( carro da Ford do Brasil dos anos 70). São os carroceiros motorizados em busca de papel e papelão. Possuem ajudantes que, correndo risco de vida, vão amontoando a carga muito além do limite que o carro parece aguentar. O procedimento equivale ao lixeiro da prefeitura que sai correndo para apanhar o saco e, enquanto o caminhão se desloca, vai mirando com perfeição a abertura da boca do caminhão. Já o carroceiro motorizado faz a mesma ginástica sem luva, sapato ou roupa adequada.
Não entendo como nunca vi um carro desses carroceiros arrear. A carga em total desequilíbrio pende perigosamente para um único lado, mas assombrosamente a ruína do que um dia já foi um carro continua a cumprir a tarefa. Estava certo quem disse que “Deus é brasileiro! As armações que seguram as laterais de tanto volume, são construções empíricas feitas com cabos de vassoura, pedaços de madeiras curtas e longas, arame , cordas e canos. Admirável!
Mas pelos carroceiros tenho primordiais sentimentos porque outro dia vi, na Av. Paulista, um desses homens com sua carroça em posição de descanso. Já o vi outras vezes no mesmo lugar porque dorme debaixo da carroça, cachorro e homem aninhados um no outro protegendo-se do frio e da vilania.
Este homem, de idade indetectável, estava sentado ao lado de uma ninhada de cachorrinhos – todos pretos – mamando na mãe, acomodados entre panos quentes dentro de uma caixa de papelão. Não deu tempo para confirmar, mas creio que o carroceiro anunciava no papelão escrito que estava doando as crias de sua fêmea que já vi também comer antes do seu dono, ou seja, ambos partilham o pouco que cada um pode dar ao outro. Curiosa percepção: são poucas as mulheres carroceiras. Os homens carroceiros dividem sua cama e comida com os vira-latas que os seguem com fidelidade canina. Sempre me comovo, seja pelo cachorro que deve ser muito especial e pelo dono que deve ser uma boa pessoa, ambos sobreviventes fortes.
Os cães estão presos em um uma corda fazendo passeios em volta da carroça. Não são agressivos, não latem. Parecem felizes com esta “vida de cachorro”. Eles são a legítima alma do carroceiro.
Uma curiosidade: não há queixas na prefeitura sobre esses andarilhos, não há decretos dizendo que não podem existir, não fazem parte das notícias, mesmo sendo o retrato fiel de uma cidade desumana com a pobreza e seus desvalidos.
Gosto de carroceiros talvez porque os imagino ingênuos e pueris devido a seu carinho com os companheiros cachorros como eu mesma sou com os meus.
A miséria humana encontra pontos de referência, encontros de uns com os outros, não importa gênero, classe, status, cor, religião.
É uma ótica da vida como ela está acontecendo: estamos sendo chamados a compartilhar e reconhecer diferenças entre nós humanos, mas continuamos a distribuir muito mal a riqueza do mundo.
Gostei imenso deste texto.
Texto muito interessante, Bettina, uma combinação de sua percepção e sensibilidade para o cotidiano das pessoas simples.
Obrigada Simone,
Sim a pobreza sem teto e com fome, as crianças sem escola, incomodam-me muito e aparecem bastante nos meus textos. Não tenho como fugir, mesmo se tento escrever com alguma poesia.
Obrigada por ler-me, acompanhar e retornar, com uma frase, todo o sentido do texto.
bom ano!
abraço
Bettina