Do chão não passa, dizia minha avó Abigail dos Santos, mãe de santo de conhecido terreiro em Salvador, BA. Sempre que algum aflito com dor no coração ou na alma – não sei se há diferença, sendo ambas tiradas literárias – a procurava, ela ouvia a história, jogava os búzios, dava alguns conselhos e por fim emitia a principal pérola de seu colar de repertorio: “do chão não passa”! Todos saiam da tenda mais conformados com a própria sorte por ser uma verdade da física segundo Newton e a maça, teoria de compreensão fácil frente aos grandes mistérios da alma e do coração.
Do chão não passa mesmo! Quando morremos ninguém sabe dizer, com certeza absoluta, para onde vamos. A crença com fé sabe. Certeza mesmo é que vamos para debaixo da terra ou em cinzas somos jogados ao vento.
Os vivos, de modo geral, param no piso do chão da alma. A dúvida se vamos desta para melhor atormenta a todos. Ir para o fundo e a fundo sobre a inquietação, causa sofrimento. Por isso admirei tanto Vovó que aliviava as pessoas garantindo que do chão ninguém passa.
Ela morreu aos 102 anos, plácida, arrumada para dia de festa. Teve 10 filhos entre negros e brancos, conhecia todas as ervas para os males do corpo e delas se alimentava. Somente eu podia chamá-la de Abi. Lembro-me de vovô. Lindo, negro como eu, cabelos brancos pixains, cortados rente, o bigode áspero ao me abraçar. Ele ajudava Abi no terreiro assim como minha mãe, tias e tios. Vovó comandava a cerimônia. Terças e quintas eram os dias de sessão. Eu mesma tinha permissão de participar desde pequena contanto que ficasse quieta no cantinho com meu vestido branco de renda engomado. Fui batizada como filha de Iemanjá e era festejada no dia dela, não no dia em que nasci. Creio que todos imaginavam, por ser a neta preferida, que eu estava ali para ir aprendendo como ser a herdeira dos dons de minha avó. Apesar de atenta não herdei sua sabedoria.
Já adolescente, desesperada, achando que minha vida tinha acabado por ter levado um fora do namorado, ouvi a frase que Abi cunhou e que ficou famosa, ecoando em todos os cantos do sertão baiano: “Do chão não passa!”.
-“Tudo isso que você está sentindo vai passar. Dê mais uns dias. Procure outro namorado. Essa sua primeira história de amor fez sua vida apenas começar. Você nunca vai morrer de amor. Viva com amor, mas não se destrua por causa dele”.
Adulta e alguns namorados adolescentes passados, quis me casar com Adalberto, um pescador que não gostava dos nossos hábitos e crenças, mas eu o amava. Um morenão curtido no sal, sorriso franco, dentes brancos, olhos risonhos, poucos pelos no corpo, boca de lábios grossos. Tocava cuíca na banda dos Filhos de Gandhi. Vestido com aquela mortalha branca e azul resplandecia na avenida nas noites de carnaval! Orgulhosa, sambando ao seu lado, a satisfação embriagada por ter um homem assim e por ter sido a escolhida! Eu o amava num misto de admiração cega e tesão, em perfeita consonância.
Perguntei a Abi como reconhecer o amor.
Ela disse:
-“Você nunca vai saber antes de viver o que acha ser hoje o amor por Adalberto. Vivi setenta e cinco anos com seu avô e só posso te dizer que você saberá o que é amor quando o perder. Quando uma cratera se abrir dentro do seu corpo e você se encontrar, miudinha, quase um ponto, encostada no cantinho, pensando no por que da vida e da morte, com a certeza de que nunca saberá o sentido de uma e de outra, mas vivendo, apesar de desconhecer os seus limites. O amor excede a ambas. E um sentimento solitário e por assim ser é forte como a rocha, quente como lava de vulcão, uivante como o vendável, ruidoso como a cidade grande”.
O amor passa o chão no qual você pisa!
Lindo texto Mana!
lindo bettina…o que quer dizer uivante como o vendável?
Ciro querido. O vento uivante faz assim “vuuuuuuuuuuuu” além de bater portas e janelas que dão muito medo.
Uivante acompanha sempre o vendaval e vendavais destelham telhados, viram carros e derrubam arvores.
Porem o importante mesmo foi o “lindo Bettina”, e te agradeço por isso.
Saudades. Beijos Bettina
Meu querido Mano, que bom que v. existe, não só porque eu te amo mas porque v. é meu mais fiel leitor.
obrigada mesmo . Um incentivão para continuar. beijo, sempre Mana