Para falar em pontes será necessário definir a qual delas se refere este texto. Existem muitos sentidos e usos.
Elas podem ser de concreto, madeira, aço, tábuas, suspensas ou fincadas no solo. Podem ser antigas, moderníssimas, antes de Cristo. Entradas para castelos ou míseros casebres construídos sobre palafitas.
Por baixo delas, por princípio, sempre há algo que impede o homem de chegar ao seu destino; caso, abaixo da ponte corra um rio, ao caminhar por cima da ponte ele sabe que não se afogará; sobre um pântano não ficará preso no caldo grosso movediço; nas alturas, entre duas margens, sempre há um precipício assustador. Entre dois prédios, uma corda e um homem, senão um exímio equilibrista, se espatifaria no concreto. Há também pontes ao deslizar sobre os canais de cidades privilegiadas com rios navegáveis, todas elas estão acima de nossas cabeças.
Seja lá como for, para atravessar de um lado para outro, sempre uma ponte terá que existir.
Mas, e quanto às pontes invisíveis?
As que são tecidas por aranhas em arcabouços mal iluminados, suas teias não deixam de ser uma ponte. Um dente sem mais uso necessita de uma ponte. Na literatura despontam no nosso imaginário como centro de algumas narrativas tanto para adultos como para crianças. Pontes acordam em nós histórias reais e ou fantasiosas quando aparecem em cenas de amores tristes ou perdidos.
Quem não se lembra da música francesa “Sobre a Ponte de Avignon”, da Ponte dos Suspiros, em Veneza? Das pontes onde corriqueiramente ocorrem suicídios? Na música, imaginamos uma ponte ao migrar sutilmente dos violinos para o piano, do piano para as trombetas. Entre gerações de pessoas, criam-se sólidas ou vingativas ligações. Na guerra, a destruição de uma ponte pode vencer o inimigo.
Pontes sempre terão um significado, ora simbólico, ora metafórico, ora assustador. As pontes existem para nos servir mas sempre estarão ligadas, de alguma forma, à coragem de cada um que nelas transitam.
Pontes são percursos ou caminhos que podem ser atravessados com pés humanos, com patas de animais ou com uma, duas ou quatro rodas. Por servirem para todos e para tudo relativo à sobrevivência da humanidade; as pontes não distinguem classes sociais, tampouco são medidas pelo tamanho de poder de uns e de outros. São necessárias para todos igualmente, – claro está- a não ser que conste uma proibição para nelas trafegar.
Entretanto existe uma ponte para a qual damos pouca conta. Esta não é construída pela mão do homem. Ela é construída, pelo elemento Tempo e, como o vento, é uma penugem filigranada, inodora e incolor.
Ao atravessarmos do útero materno até a porta da nossa morte, muitas são as pontes, as passagens, os percursos, as travessias, a ligação entre um ponto e outro, não importa a definição semântica. Todas elas são contadas em tempos, estes divididos em fases: muitas pontes pelas quais temos que nos mover, queiramos ou não. Assim é!
Porque ocorre, hoje, dedicar-me a escrever tanto sobre pontes quando é no ser velho que reflito? Obtive a resposta a esta pergunta depois que deixei o consultório do neurologista.
É amplamente divulgado que, por conta do envelhecimento, nos tornamos menos espertos. Mas pílulas milagrosas podem retardar tais deficiências, apesar de serem as células que perdem a energia de outrora. Minha tendência era acreditar nestas soluções, porém desacreditando. Um dilema contemporâneo na verdade. Para não cair em tentação, liguei o envelhecimento à passagem do Tempo como sendo o responsável pelo processo do envelhecimento.
Entre ficar na dúvida e entregar-me ao caminho mais fácil, marquei a consulta com o neurologista:
– Sim! entendi, doutor! O senhor está me dizendo que me encontro irritada, esquecida e impotente em resolver o mundo prático, este mesmo mundo que sempre dominei “com um pé nas costas”?
– Sim senhora! Não dar mais conta do dia a dia como antigamente, atrapalhada quando das pequenas tarefas, estas que lhe deixam em sofrimento e frustração, é porque a senhora vem perdendo sua noção cognitiva.
Devo ter olhado com espanto para o doutor, pois apesar de saber o que quer dizer cognição, não imaginei que isso poderia estar acontecendo comigo.
– Apenas isso! Ele respondeu, um sorriso gentil, ainda de jovem. Seria complacência?
Não sem uma certa raiva pela ousadia do médico de me tratar como uma retardada, ele continuou:
– A senhora não deve achar que tem alguma questão fisiológica grave. Não é Alzheimer!
No elevador já havia me dado conta que, apesar de bem com a vida, inicio a travessia de uma ponte absolutamente desconhecida cuja placa informa meu inexorável, implacável e inevitável desgaste cognitivo. Antes de bater na porta do médico, eu tinha certeza ser ainda capaz de fazer girar pratos em uma mão e na outra escrever esta crônica!
Realizei que ser velho é uma condição, um fato e, aceitá-lo ou não, eis a questão.
Entrei no táxi, aliviada com a verdade: ser velho é muito diferente de ser um velho!
Ao passar por esta visita ao neurologista, penso que, saber-se velho não é o mesmo que sentir o temeroso e infeliz envelhecimento!
Ao reconhecer esta confortável realidade, sei que trânsito, hoje, em uma ponte situada entre aquela fase em que conseguia empinar papagaios e agora a de ser velha. Sei que, paulatinamente, minhas células irão envelhecer junto comigo; sei que só há mais uma última ponte para ser atravessada. Mas vou quedar-me nela, plena de vida, até o final. Vou me estacionar nesta que muito me agrada!
Nesta ponte, no meu novo dia a dia, passei a fazer uma só coisa por vez: um só prato na mão esquerda e depois um só lápis na direita.