Leio livros. Muitas pessoas leem. Há os que leem muito, os que leem pouco ou, simplesmente, não leem. Mas há os que gostam de sugerir um livro a alguém que gosta de ler. Assim sendo:
Acabo de terminar “Todos os Nomes”, romance escrito por José Saramago. Trata do Sr. José, obscuro funcionário de um cartório, em Portugal – que aqui leva o nome de Conservatória Geral do Registro Civil.
A descrição sobre a hierarquia funcional da Conservatória Geral do Registro Civil, através do uso das situações que vão se sucedendo, repetitivamente, ao longo da história, mostra a repetida necessidade que temos de nos apresentar aos cartórios para receber o carimbo oficial de que estamos vivos ou mortos.
A hierarquia nesta Conservatória de Saramago passeia entre o humor negro, o sarcasmo, e, ironicamente, trata da vida e da morte impregnada na papelada, enfurnada e, por fim, confinada à sua própria obsolescência. O arquivo esquecido, imerso na escuridão a tomar um espaço há muito lotado pelos mortos.
À medida que as páginas avançam em ritmo de suspense e terror, eu consigo imaginar a burocracia ainda vigente nos nossos cartórios, provável herança dos tempos de Brasil colônia de Portugal! Destaco uma das frases de Saramago que adverte o leitor a não confiar inteiramente nos dados transcritos por algum escrevente cartorial, mesmo cioso como Sr. José:
“a memória, nesta casa de arquivos, é tenaz, lenta a esquecer, tão lenta que nunca chegará a olvidar nada por completo”!
Saramago não localiza a época em que a história do Sr. José acontece, contudo, flanando pela Lisboa antiga, deduzi que se passa no século vinte por conta da descrição poética e detalhada dos antigos casarões oficiais ainda hoje de pé. Certamente devo ter passado pela Conservatória, pois vi algo parecido com a saborosa descrição de Saramago:
“Por cima da porta há uma chapa metálica comprida e estreita, revestida de esmalte. Sobre um fundo branco, as letras negras dizem Conservatória Geral do Registro Civil. O esmalte está rachado e debilitado em alguns pontos. A porta é antiga, a última camada de pintura castanha está a descascar-se, os veios da madeira, à vista, lembram uma pele estriada. Há cinco janelas na fachada”.
Apesar de não mais existirem os arquivos, hoje guardados na nuvem branca, Saramago descreve o que todos nós cidadãos brasileiros e portugueses, ainda hoje, encontramos ao adentrar no Cartório de Notas, qualquer um:
“Mal se entra”, a primeira linha de mesas, paralelas ao balcão, é ocupada por oito auxiliares de escrita a quem compete atender ao público. Atrás dela, igualmente centrada em relação ao eixo mediano que, partindo da porta, se perde lá no fundo, nos confins escuros do edifício, há uma linha de quatro mesas. Estas pertencem aos oficiais. A seguir a eles veem-se os subchefes, e estes são dois. Finalmente, isolado, sozinho, como tinha que ser, o conservador, a quem chamam de chefe no trato cotidiano cruza o limiar, sente-se o cheiro do papel velho.”
E por aí Saramago inicia a história do sr. José, único personagem do livro. Ele transita, invisível para todos que ali trabalham, apesar de humilde, paupérrimo, medroso e inseguro, ocupando o mais baixo degrau da escada hierárquica, vai se tornando um ser corajoso, pensante e criativo no emaranhado que cria a história. O Sr. José é capaz de se movimentar no anonimato e na escuridão labiríntica perfazendo incríveis peripécias atrás do inútil.
Apaixonada pelo Sr. José, terminei o livro e voltei-me à reflexão:
Como brasileira em Portugal, convenci-me de que, apesar de termos sido colonizados por portugueses, quer me parecer que, em comum, temos apenas a burocracia (e o excesso de açúcar nos doces!).
Não há como tecer dúvidas quanto às diferenças marcantes e visuais, principalmente ao lançar seu olhar para o horizonte, imaginar o Brasil do outro lado, o mesmo oceano Atlântico entre ele e a muralha de rocha que bordeja a costa portuguesa. Ver partirem as frágeis naus não maiores do que uma grande casca de noz, os intrépidos navegadores arriscando suas vidas em busca de descobrimentos de novas terras. Apesar de ser o mesmo Atlântico que toca nossa costa brasileira, este é mais inquieto, denso, escuro, melancólico e frio. Não saberia dizer – e me perdoem os portugueses – o quanto tais características não influenciam a sisudez dos portugueses.
Não há sequer semelhança na maneira de pensar e se expressar dos portugueses, tanto na linguagem falada quanto na escrita. Portugal abriga dezesseis milhões de portugueses, na grande maioria de tez branca. As quatro estações do ano estão bem definidas. A vegetação toda ela é coberta de pinheiros. Sendo um país sujeito a terremotos, a arquitetura é construída de acordo, ou seja, há pouquíssimos edifícios que ultrapassem 8 a 10 andares. Conservam a sua história e seus monumentos e dela se orgulham, sem mencionar a tal da qualidade de vida reclamada pelo cidadão brasileiro. Porém não há como discordar: as estradas são conservadas, os motoristas respeitam as zebras, as ruas são limpas, as calçadas próprias para o pedestre não cair nos buracos.
Contudo, como brasileira, turista em Portugal, é, sem dúvida, muito agradável descansar da poluição visual e auditiva do nosso cotidiano e, sobretudo, usufruir da segurança pessoal da qual os portugueses desfrutam, mas…
escolho viver no Brasil da Amazônia, do caminhar da inserção social dos excluídos, da diversidade cultural e humana, da índole do jeito, da música, do Nordeste esquecido, das praias sem fim, da possibilidade de poder desejar um País mais justo com seus pobres, da capacidade de improvisação e criatividade. São muitos os benefícios como são inúmeras as minhas reclamações diárias, mas, sinto que há futuro para meus bisnetos, há campos de atividades a serem desenvolvidos, vazios para serem conquistados.
No Brasil estou em casa!