Um dos meus passatempos favoritos é assistir a filmes de vikings moradores das gélidas planícies do Norte da Europa, cujo território abrangia o que hoje conhecemos como Suécia, Noruega, Finlândia, Dinamarca.
Hercúleos e violentos saqueadores, verdadeiras forças da natureza, mas – segundo os filmes – amantes elegantes e amorosos.
Contudo, o que mais me deleita ao assistir a filmes sobre os escandinavos, os vikings em particular, é sua destemida coragem em alto mar e maestria como velejadores em barcos tão eficazes que eram temidos pelo mundo que tentavam conquistar. Singravam por entre as violentas ondas geladas para conquistar novas terras ao sul.
Enfim, conto aqui um dos deleites que os streamings me deixam descobrir mas… também leio livros!
Acabo de ler o livro de Jon Fosse cujo título é Manhã e Noite e lembrei de uma peculiaridade dos antepassados deste escritor: a coragem no convívio tranquilo com a morte!
Jon Fosse, o escritor norueguês premiado com o Nobel, narra algo que só pode ser imaginado, que ninguém neste mundo do bom deus, sabe: conta sobre o dia seguinte em que Johannes, personagem do livro, não mais acordou para encher sua costumeira xícara de café e enrolar o cigarro antes de partir para a pesca ainda de madrugada.
Johannes já se encontrava entre dois mundos!
O escritor transpõe o cotidiano de Johannes ao enveredar para o dia que sucede sua morte: o descreve, em tempo presente, inserido em um relato, sereno e leve, tal qual o protagonista que o viveu, agora, no limbo de um dia em que já não mais se encontra entre os vivos.
O enredo cativa por sua elegância no trato da vida de um simples pescador. Transitamos numa realidade virtual, – cabe ao leitor decidir se provável ou não – sem a interferência da dor, da perda ou do trágico, apenas o tempo de um dia entre o interregno de uma vida e a morte do personagem.
É através dos pensamentos de Johannes que tomamos conhecimento, lentamente, através da sintetização de como vive um pescador nórdico, dos seus hábitos, dúvidas, crenças e jeito de ser, enquanto traça o seu perfil como sendo um homem calmo, cauteloso e sério na rotina, sem percalços. Em nenhum momento Fosse sinaliza com a morte, a finitude ou afirma ser esta a maneira como se realizaria a passagem de um mundo para o outro.Apenas descreve, em detalhes, lindamente, o habitat do pescador e sua relação afetiva com a filha Signe.
Johannes sai de sua modesta casa, atravessa o átrio de tijolos envelhecidos, o tempo fechado, pensa em se despedir de Erna, a mãe de seus sete filhos e põe-se a caminho do porto, pensa que talvez não fosse um bom dia para sair de barco. O caminho diário o obriga a passar pela casa de Peter, seu companheiro de pesca, e se pergunta, estranhando, porque as janelas da casa ainda estão cerradas e pensa que, naquela hora da manhã, já deveriam estar abertas.
Para chegar ao ancoradouro precisa descer a colina cuja picada conhece desde sempre e estranha não encontrar ninguém pelo caminho. Ao final do trajeto, encontra seu parceiro Peter já a postos, pronto para partir para o alto mar. Johannes está receoso em lhe perguntar porque as venezianas da sua casa estavam fechadas e tampouco lhe transmite sua preocupação sobre o mau tempo. Peter é quem decide sair em seu barco com Johannes a bordo.
Durante a travessia, conversam e Johannes é tomado pela estranheza! Há algo de errado com seu amigo e pensa: “ está muito envelhecido; seus cabelos brancos desgrenhados estão sem corte e longos demais”! e conclui: “é hora de eu cortar seus cabelos” – era praxe cortar um o cabelo do outro e, em pensamento, fala para o amigo: “depois que desembarcamos a pesca no porto, passo em sua casa e vou lhe cortar os cabelos”. Peter concorda.
A um dado momento, – será um rompante de realidade?- Peter não mais se encontra junto dele e, ao Johannes puxar a pesada rede para dentro do barco, desequilibra-se e pensa que vai se afogar mas, a custo, consegue se segurar na borda e pensa já estar velho para continuar como pescador; em seguida, ao voltarem para o cais, Johannes estranha novamente: a pesca foi boa, o barco está cheio de caranguejos para serem vendidos, mas ninguém os espera no cais para comprá-los!
Uma pausa na rotina e Fosse permite-se colocar Johannes e Peter, sentados em um banco do cais, entregues aos devaneios do passado; trocam confidências sobre as duas moças sorridentes, de braços dados que “vêm” caminhando ao longo do ancoradouro em direção a eles. São elas Marta e Erna, respectivamente, suas esposas na vida real.
Neste cenário, os dois amigos voltam a dirigir seu olhar para o final do cais e “enxergam” Anna Petterssen, a moça jovem que Johannes gostaria de ter namorado mas, como uma bolha de sabão que se rompe, Johannes pensa incrédulo: “como pode esta mulher ser Anna Petterssen, a mesma que comprava os caranguejos, se ela hoje é uma mulher tão velha quanto eu?”
Há ainda muitos outros momentos delicados e descritivos que se passam entre o real e o – será sonhado? – acontecendo de Johannes.
Jon Fosse não se propõe a responder a perguntas sobre qual poderia vir a ser este lugar em que Johannes se encontra. Para onde estaria se dirigindo? Fica para cada um responder a si mesmo.
A mensagem que toca ao terminar a leitura deste generoso e poético texto, acalma o nosso medo sobre o depois da nossa morte!
Há paz ao Johannes começar o dia, como o fez, todas as manhãs da sua vida ao enrolar o seu cigarro, tomar a sua xícara de café e sair para pescar!
É sua filha querida que o encontra, deitado, tranquilo, em seu quarto, apenas separado da cozinha por uma cortina. Vivia sozinho.
Espero que Johannes chegue ao prometido Walhalla!
Recomendo a meus esparsos leitores o livro Manhã e Noite