Antes de entrar no meu quarto de dormir, passo por um hallzinho que tem uma janela com duas lâminas de vidro. Uma sobe e a outra desce para um esconderijo devidamente camuflado com uma placa de madeira.
Para defender-me de alguma eventual indiscrição do prédio em frente, instalei uma persiana que abro e fecho conforme o meu humor, mas, – e eis a questão – cada vez que desejo abri-la, sou obrigada a acionar, simultaneamente, duas borboletas, uma de cada lado, com o indicador e o dedão fortemente grudados nas quatro asas das duas borboletas.
Lembro que ao vir morar nesse apartamento antigo, vintage — segundo alguns arquitetos, sem sala de musculação, portaria, circuito fechado de TV, dois segurança plantados na porta de entrada, piscina, ofurô, parquinho para crianças, garagem subterrânea, espaço gourmet e rampas e corrimões para cadeiras de rodas, pensei : ele é deveras “pobrinho”, mas é simpático e eu gosto muito dele!
Bem! Isto posto, mudei para este apartamento e reformas foram necessárias. Quando chegou a vez da janela, cujo cansativo sistema de abrir e fechar não era possível, deparei-me com as danadas borboletas de ferro inutilizáveis. Pus-me a procurar por elas tendo como referência apenas uma de modelo. Minha procura passou por inúmeros profissionais, aqueles de antigamente, que eu imaginava conhecerem uma borboleta jurássica. Encontrei um marceneiro de boa alma que se lembrou de ter visto, em algum lugar, este indispensável dispositivo para abrir uma mera janela. Ele procurou em vários recipientes onde se encontravam pregos, porcas, parafusos, botões de todo tipo e utilização, tudo misturado. Após algumas horas, eureka! saí da acanhada e mal iluminada oficina, tendo em mãos, para mim agora uma jóia enferrujada, a borboleta de antigamente.
Desde o dia em que consegui manusear com certa destreza as borboletas, andei especulando quem poderia estar morando no prédio em frente, uma vez peguei uma senhora olhando para a minha janela, eu olhando para a dela igualmente. A partir deste dia, a janela passou a ser companheira das minhas horas solitárias: eu passava pelo hall e sabia que lá havia ao menos um ser humano.
Continuo espiando, muito discretamente, mas a janela da senhora está no meu radar com certa frequência, principalmente quando a luz, que deduzo ser a da sala de visita, fica acesa a noite toda. Outro dia, vi uma pessoa vestida de branco. Imaginei ser uma cuidadora. Na sequência destas observações, ative-me firme que ali mora uma senhora velha e provavelmente doente.
Meu ângulo de visão é restrito. Adivinho uma estante junto a única parede visível. Alinhados, livros e bastante porta-retratos nas prateleiras, – razão pela qual, no dia em que ouvi algo como sendo uma festa, deduzi serem os filhos que vieram visitá-la e cantar o parabéns para ela. O simples fato da festa ter acabado cedo acrescentou a veracidade que eu necessitava para dissipar minhas suposições.
Mas nem tudo na vida é tão certo nem tão errado.
Eis que hoje, com as duas mãos, aciono a tal da borboleta do achados e perdidos do marceneiro, e me deparo mais uma vez com a janela que fica exatamente em frente a minha. Sobreveio um espanto! Um espanto que classificaria como de tristeza, mas talvez de clareza também. Não é de todo impossível que minha mente fantasiosa tenha esbarrado na realidade.
Um travesseiro, maior do que o normal, daqueles que os doentes usam porque mais adaptados à dor, estava exposto na janela da senhora – não me ocorreu que pudesse ser de um senhor – o travesseiro estava amparado por uma rede, destas que protege o gato de não cair.
Na hora, passou-me, sem definição precisa, que o travesseiro tinha que tomar ar e receber sol porque algo derramou-se sobre ele enquanto a cuidadora tentava ajudar a doente porque ela não mais podia cuidar de si mesma.
Como um travesseiro na janela pôde levar a um sentimento espantoso?
Aqui dou crédito à minha imaginação: o morador em frente está com Alzheimer!