Casas caiadas, portas e janelas verdes e azuis intensos. Pedras escravas pavimentam um caminho de penosa lembrança: o trabalho forçado. Pedras carregadas nas costas da negritude de quem sonhava com a liberdade.
Um porto, depois o mar aberto.
O Brasil Colonial, uma passagem da História que não deixou saudade.
A festa é ambicionada por escritores conhecidos, outros nem tanto e a maioria
que gostaria de ser conhecida e sabe que não será.
A programação intensa traz de cada canto do Brasil um tsunami de gente que trafega de uma casa caiada – ou já embolorada pelo tanto que chove neste litoral que une Santos ao Rio de Janeiro – para outra onde lançamentos de livros ocorrem, palestrantes, entrevistados e vendas se confundem. Paira uma precariedade no ar quando o calor intenso aperta, a chuva rola sobre as pedras cuneiformes e a elétrica entre em pane.
Contudo, nesta festa vive-se o clima de “tudo é Brasil”!
Verde, amarelo, anil e… o progresso: a bem vinda e real inserção social, linha vitoriosa brasileira. Para lá confluem raças de todas as origens, condições sociais, gêneros, intelectuais estrangeiros e nacionais, pobres e ricos. Muitos restaurantes e pousadas acolhem todos igualmente.
Paira no ar a sensação do pitoresco que se vê impressa nas beiradas das calçadas empedradas onde os artesãos se estabelecem, compradores param para apreciar as joias em pedra e latão, cocares coloridos, doces, bolsas de palha, cestas marajoaras e tantos outros produtos do nosso folclore.
Mas não é só de festa que vive Paraty por quatro dias. Há o lado organizado onde fica clara a razão de ser da Literatura. Uma grande tenda é armada sob forma de circo, refrigerada, na qual se reúnem as pessoas que escolheram comprar entradas para diferentes eventos literários, – as mesas divulgadas previamente – onde ocorrem, durante os quatro dias, protagonizados escritores premiados que publicaram livros de grande tiragem. Eles contam – com a intervenção de mediadores – para um publico escrevente ou leitor assíduo, porque escrevem, o que escrevem, como pensam e geralmente são confrontados com outro autor que pode contestar o colega, acrescentar valor ao seu trabalho, contar sobre seu livro. É neste palco que o escritor profissional se coloca e o público se interessa por ouvir os seus preferidos. Todos os dias e horas, o auditório se encontra cheio e os bilhetes de última hora esgotados.
A organização oficial acontece sem percalços e para aqueles que não puderam assistir ao evento, ele é muito bem filmado e projetado em outra enorme tenda, gratuita e simultaneamente. Grande sacada na Flip!
Até aqui contei sobre o ambiente em que a festa literária brasileira acontece.
Suponho, porém, que cada uma das milhares de pessoas que se deslocaram para chegar até Paraty tenham percepções e sentimentos diferentes uns dos outros.
Eu gostaria de contar a minha:
“Me” lancei na Flip com o livro 2016/2023, Contos e Novelas. Participei de duas mesas tendo como mediador o escritor Marcilio Godoy, ele mesmo lançando o seu mais novo livro cujo título é singular: Como Escovar os Dentes num Incêndio.
Ainda antes de chegar à Flip, a tensão me acometeu. Lá, atordoada, uma pergunta martelava na minha cabeça: será que saberei dizer coisas inteligentes?
A tensão foi aumentando até chegar a hora agá! (Fui bem, como principiante, disseram os amigos que gostam de mim)!
Mas perdi-me entre o tsunami de gente e algumas precariedades, mas, algo só me ocorreu ao voltar para casa:
Eu havia perdido o meu lugar, aquele de dentro! O dito lugar de fala!
Explico:
Busquei desde jovem, séria e honestamente, não grudar em pre-conceitos de nenhuma ordem. Mas ao vivenciar a diversidade de pessoas agremiadas em um espaço, em si exíguo e confinado a algumas vielas e travessas antigas e coloniais, ocorreu-me pertencer a outro século, a outros limites, outros hábitos, outros aprendizados, outra História: munida de tal sensação soube que eu havia esquecido o meu lugar num lugar onde cada um encontrou ou buscava encontrar o seu!
Há lugar para todos neste contemporâneo acontecendo do qual também sou agente integrante, faço parte da diversidade mas, meu lugar está em escrever lá de onde me encontro, um lugar que desbastei para mim.
Um lugar de comissura, sem espaço para me espalhar, ser de fora, confinada ao chão cinza da alma continuamente revisitado. Aliás, a razão do livro lançado, 2016/2023, ou sete anos de escavações que contam histórias ligadas pelo invisível fio condutor do Tempo. Cada um em seu lugar, espaço e lugar de fala.