Passo diariamente ao lado de uma loja com marquise, cujo portão de ferro está baixado. Em frente a esta porta, um catre feito de madeira de construção segue o desenho de uma cadeira de praia. Uma” chaise-longue” de ripas e encosto inclinado sob um guarda-sol branco, conhecido por “ombrelone”. (Por que será que num país com quilômetros de costa e praia, usamos nomes estrangeiros para designar a mobília de verão?).
Sobre o catre, um colchão de espuma e deitado nele um homem. Nos dias chuvosos cobre-se com uma velha manta, nos dias de calor com um lençol. No estreito degrau abaixo do portão, um copo, uma escova de dente e pasta semi-usada. Dependurado num gancho do guarda-sol, uma camisa branca que recebeu uma lavagem de córrego, mas não tirou as manchas mais tenazes. O engenhoso ocupante da “cama”, além de aproveitar o estreito degrau como banheiro, o usou como prateleira de cozinha: uma marmita e um saco plástico com sanduiche aguardavam a próxima refeição.
Caso esta cena estivesse escondida atrás do desenho de uma janela, não a veríamos porque não teríamos como abri-la, mas, caso o desenho fosse de uma janela aberta, certamente seria indiscrição olhar para dentro, tal o conforto, sem constrangimento, visível e ordeiro que ali reina. Com a janela aberta, veríamos um homem nu, ensaboando-se de cima abaixo na bica de um parque ou cano furado de uma avenida.
Passo em diferentes horas do dia e lá está o moço, jovem, tufos de cabelo negro no peito e barba, estendido, confortavelmente, em sua “ chaise”. Ao seu redor, tomando bastante espaço da calçada, sacos cheios, pode-se supor de troca de roupa. Às vezes está com os braços cruzados atrás da cabeça, olhando para nós ,transeuntes, de cima para baixo. É possível ler um sorriso embutido em seu rosto. Falta, para completar o cenário, a carroça e o fiel cachorro. Imagino que ele se separe do ruído de carros e movimentos de humanos, encoberto por uma solidão que possivelmente lhe traga a noção simples de existir por existir. Paira a minha dúvida: sua respiração invisível teria cheiro de medo? Ou ainda: estará ele apenas ligado ao mundo por um fio de carretel?
É possível que a vida nos engane, fazendo-nos acreditar que contém algo de importante dentro dela.
Perguntei seu nome. É Leopoldo, nome de príncipe.