Sou atendida por M., um motorista de táxi com o qual me locomovo por São Paulo e peço: “por favor, vá buscar tal coisa na casa de fulana”, ou “por favor, leve-me para tal endereço”. É tradição mundial, entre motorista de taxi e passageiro, trocar opiniões sobre as manchetes do dia. E por assim ser, claro que não fugi à regra!
M. e eu conversávamos sobre as notícias políticas em curso, tomando cuidado para não politizar, mas não resisti a tentação de perguntar:
– “em quem você vai votar”? (Pergunta perigosa nestes tempos correntes só para satisfazer uma curiosidade.)
Declarei o meu voto e ouvi silêncio. Silêncio que durou dias. Minha impaciência começou a germinar e preciso admitir, senti emergir uma vontade de brigar, pressupondo já saber qual seria a resposta de M. Talvez ele não a tenha dado para não perder uma cliente, talvez por achar que me ofenderia, que eu o censuraria.
Nestes dias de silêncio, soube que ele, assim como seus colegas e os caminhoneiros, recebe, desde julho, R$ 1000,00 por mês. Ao tomar conhecimento desta irracionalidade, minha raiva contida confirmou o fato e voltei a perguntar:
– “é verdade que você recebe mil reais por mês do Bolsonaro, R$ 6.000 até dezembro?”
À pergunta feita, ele respondeu meio que querendo esconder a realidade e resmungou ser mais do que justo!
– “Mas você se dá conta de que ele comprou o seu voto? Retruquei.
M. confirmou minha suspeita, mas tenho ciência que ele, como os demais beneficiados, não tem como admitir para si próprio a imoralidade do fato. Assim, o temor, sim o temor, me disse para ficar quieta.
Depois da minha fatídica pergunta, M. passou a fazer, silenciosamente, “as coisas” de má vontade, sua gentileza tornou-se cautelosa, seu humor oscilante e continuou assim após o resultado das eleições a ponto de eu não o tolerar mais, sem disposição de conviver com sua desatenção e mau humor.
Dia seguinte à eleição, comentei:
“- que surpresa, não é! Foi por tão pouco! “
Pude ouvir o silêncio inconformado!
Hoje, “o não tolerar mais” revela que estou imbuída do mesmo sentimento radical que me fez afastar – sem volta – de amigos bastante próximos. Encontro-me assustada com esta sensação desagradável e passei a refletir sobre o sentimento do contradito.
Rastro, vestígio, pegada, pisada são sinônimos para uma mesma palavra: um caminho que a gente percorre com um rastilho, na esperança de esquecer, de rastilhar as marcas fincadas, fundo, nesta picada.
Ficará, no tempo e na memória, um pesado vestígio encobrindo onde já se pisou.
Por que a imagem de caminho pisado aparece nítida neste momento? Porque uma nação inteira de brasileiros deixou sua pegada neste caminho.
Nos meses anteriores as eleições, o caminho foi palmilhado por fortes desavenças de vertente emocional. A raiva latente, a ignorância grassa, a desinformação proposital, as amizades separadas, a vingança irracional, a pátria dividida e fatiada como um bolo.
Atravessar essa picada até o dia da eleição foi um pesadelo que demonstrava como se cristaliza a insanidade de um povo, como se constroem revoluções, declara-se a guerra, ofende-se em duelos. É do humano perder a razão perante fatos, ou melhor, realidades defendidas em oposição.
O tema de que disponho, na ponta dos meus dedos ao teclar esta crônica, poderia versar sobre tolerância ou a falta dela, sobre a falta de educação política e, por fim, a força radical defendida com o achismo.
O rescaldo desta polêmica irracionalmente nacional, separatista, violenta, desgastante, e, por que não, chata e muito triste, é o pano de fundo de uma confissão:
“Confesso que, por mais que me esforce, não consigo deixar de lado o preconceito com o qual carimbo os que votaram Bolsonaro.”
Advertência: leiam este texto sem me considerar petista. Sou apenas preconceituosa!