Lembranças
Um vasinho de cerâmica quebrado, uma mascara de barro com olhos de vidro engraçada, dois potes de cristal azuis, um arranjo que lembra algo chinês, uma pedra, três fotos, dois porta – retratos.
Muitos anos de vida em uma casa juntam muitas coisas guardadas por conta de alguma lembrança, mas que hoje não servem para lembrar mais nada.
Junta-se mais coisas do que os próprios anos que passaram. Coisas que não esquentam água, não fazem comida, não batem o bolo, não fritam o ovo, não cortam o pão. Mesmo assim, delas não conseguimos nos separar pois, se descartadas, tornar-se-iam lembranças traídas. Achamos que ao mantê-las existindo, nós nos manteremos vivos eternamente. Eis ai uma ilusão embrulhada em papel de seda. Se não mudarmos com a mudança, vamos carregando lembranças das quais não nos lembramos mais. Cada objeto tem seu próprio tempo, cada um, o valor do seu gostar.
“Ah! Se eu pudesse agora zangar-me com os meus filhos eu não estaria aqui tão consciente do meu envelhecimento que chegou tão rápido.”!
Fotos hereditárias
Talvez o mais doloroso ato que ocorre em uma mudança de casa é escolher qual foto selecionar para levar consigo. Qual o critério para escolher quais são os momentos a serem lembrados? É um filho fazendo careta, uma arvore de natal em família, última foto da avó, a do cachorro amado que já morreu, a única foto de casamento, aquela que sobrou do álbum da filha que foi embora. Melhor deixar a decisão para depois ao virar a gaveta na caixa de papelão. Elas não dizem só respeito aos nossos momentos ali fotografados, mas já vem como coletânea de mortes também. Jogar fora, torna-se então dupla questão: é sacrilégio ou falta de respeito com o passado? Na difícil tarefa de resolver o dilema, deixamos para a próxima geração decidir.
Não se escolhe a melhor foto mas se sente o melhor momento captado. Percebe-se a lembrança transformada em imagens intensas e fortes, “como se fosse ontem”!
A cada prato, copo, quadro, foto que vai se embalando, junto estamos embrulhando valores diferentes. O apego geralmente é maior com o vasinho de cerâmica quebrado do que com o copo de cristal. As fotos deixamos amarelar na próxima gaveta.
O melhor da mudança
Os inúmeros anos vividos na casa se resumem em montinhos ou montões espalhados por todos os lugares. Moveis para um lado, caixas de bibelots para o outro, livros no chão aguardando uma triagem.
Papel. Muito papel juntado pedindo a hora de serem jogados fora. É o melhor de uma mudança. Cartas, santinhos de missa de sétimo dia, relatórios
datados, extratos de banco que mudou o nome, contas de luz , certidões que não servem mais. Picar papeis é o momento da grande alegria e alivio nesta passagem de sensações confusas e contraditórias. Saudade com esperança renovada, peso do já vivido com a leveza inicial de uma nova etapa da vida. De modo geral é quando os filhos deixaram de dormir no quarto ao lado dos pais.
Ninho cheio
Quando se muda, filhos junto, as mudanças de casa são mais rápidas porque as coisas que vão para as caixas ainda não possuem memórias. Toalhas de cama e banho por exemplo, uma boa oportunidade para contá-las e repor as rasgadas ou trocar o pano sujo do sofá. A mesa de jantar a mesma, todas toalhas servem.
À eficiência necessária quanto à logística desta mudança sobrepõe-se a sensação vaga de que o tempo já cumpriu uma etapa. Das rendas e bordados às fotografias, as emoções profundas são abafadas pela lógica do tempo. O cachorro de estimação ainda não morreu!