Imaginemos a implosão da Acrópole em Atenas. BUUMMMM!
Barulho ensurdecedor! Tentem visualizar!
O som das antigas pedras e a colunata que as sustentavam despedaçadas em milhões de fragmentos, desmoronando morro abaixo, levando atrás de si um espesso nevoeiro de fumaça de pedra branca como se mil cavalos estivessem galopando, todos ao mesmo tempo para salvarem-se da avalanche de uma Antiguidade que mal conseguimos conceber por ser tanto o tempo decorrido?
Pois é! Foi com esta imagem e o som consequente de desmoronamento que vivi os 90 minutos da cremação de três amigos, um depois do outro, 30 minutos para cada um. As idades entre eles não variavam tanto assim, e talvez por isso, coincidência ou não, morreram um depois do outro no transcorrer de quatro dias. Não lhes foi concedido fazer parte da leva daqueles que viverão até 110 anos. Eu também não farei parte desta leva. Foram meus amigos da prisca idade da minha mocidade adulta até hoje. Estivemos juntos quando namorei meus maridos; eles, suas esposas. Quando dei à luz aos meus filhos, e as esposas de meus amigos aos deles, nas festas de casamento e nas grandes comemorações das simbólicas datas: 50, 60,70, 80 anos ainda festejados como se fossemos viver eternamente, mas já com dificuldade de apagar, com um só sopro, as oitenta e mais velinhas. A gente sabia quase todos os segredos da vida, digo quase por que cada um dos meus amigos conhecia um que eu desconhecia.
Entre os poucos amigos remanescentes, é comum comentarmos gostar mais de um do que de outro quando a conversa chega às idiossincrasias, porém, nas passagens, não tão simples que a vida nos pede para resolver, pedimos ajuda a eles, e destes que se foram, a recebi. Assim sempre levarão o digno título de amigos para mim.
Pois é, foram-se! Meu passado, como a Acrópole, implodiu e o quadro ficou mal dependurado com o terremoto que minha memória sofreu. Uma vida inteira para lembrar, acompanhada por pessoas que conheci e gostava. E agora, vou lembrar de quem? Faltam muito poucos para também se irem!
Criou-se uma cratera que não tenho como fechar, (nem com o entulho da Acrópole = o Esquecimento).
Mencionei um pouco acima, que “conhecíamos quase todos os segredos da vida”, pois eu desconhecia este: a memória não fica esquecida, apenas se esconde, mas gruda na primeira pele e volta com intensidade quando desmorona.
Imóvel, sentada no anfiteatro onde a cerimônia da cremação toma lugar, entre os escombros das perdas pelas quais todos nós passamos, refleti que a memória é pouco expressiva e vazia de afeto. São imagens que vão e veem, intermitentes, não delimitam a hora do momento. Como sempre, nas exéquias de um amigo, o silêncio respeitoso faz pousar sobre nós lembranças que me pareceram, no momento, concretas, não permitindo que eu divagasse em fantasias. Ao mesmo tempo em que elas foram mais alegres logo tornaram-se se sofridas. As lembranças têm cor e cheiro, têm sentimentos sem as molduras que o Tempo gosta de espinhar em nossos corações. As minhas lembranças são claras e livres, as memórias, mesmo se boas, me amargam deixando um lastro de gosma como as que as baratas abandonam. (Nesse momento me permito esta imagem desagradável porque estou desacorçoada e a gosma da barata chega como argumento sobre a diferença entre memória e lembrança.
Conheço o Tempo que passa, estou ciente dele e não é dele que reclamo. Reclamo de uma geração que deixou para trás o vazio que sinto: um quase século de história vivida. Não pensei em minha finitude. Pensei na dos meus amigos. Chorei por isso! Desapareceu quase um século da geração que fez, construiu, foi, deixou de fazer, criou o que sabia fazer, nas adversidades caiu e se levantou em moto contínuo. Viveram um quase século inteiro, que conheci em suas minúcias. Junto com eles, os vãos de fogo se apagaram e não voltarão com a intensidade com que queimaram um arquivo de vida que só ao morto pertencia. Um momento a ser homenageado: construíram descendentes e edificaram ações. Marcantes ou sem importância, meus amigos viveram a contemporaneidade da nossa época. Passaram por marcos à beira da estrada. Alguns os perderam, outros não foram vistos, mas quando reconhecidos, deles se apossaram.
O corpo nos diz que passamos por aqui embora sejam os anos que riscam um rabo no céu como um foguetório de São Joao! Brilha por instantes, mínimos. É deste risco no céu que estou a falar. Só dele: da sua efemeridade. Quando se apaga foi-se quase um século. São muitos anos, meses, dias e horas, mas muito pouco Tempo se passou! Realmente do pó nascemos e a ele retornamos!
A pira não fica eternamente acesa para nós que morremos!