Cachorros não falam. Traduzem o silêncio. Cachorros não ocupam um espaço vertical como nós. Eles o ocupam horizontalmente, o que faz deles seres especiais. Deitados ao nosso lado, comandamos amorosamente os diálogos por uma só via. Quando saímos a passear, os dirigimos na guia sob nosso controle. Se doentes, sofremos junto e só nos resta cuidar como se fossem filhos, mas na hora de partirem, não renunciamos ao poder de deixá-los ir em paz. Pensamos no nosso sofrimento quando deixam de responder às nossas vontades.
Deixei, hoje, minha amada labradora, ir-se! Queria prolongar mais um dia, outro, e mais outro. Um ano dela equivalia a sete nossos: Lola morreu com 100 anos! Um milagre da ciência enquanto a Natureza a aceita, mas chega a hora em que o mistério da vida e da morte desce sobre a Terra: vai enfraquecendo o coração e um líquido tranquilizador pode ir penetrando como um elixir e suavemente sair da esfera da ciência para avisar que morreu. É a hora máxima na qual entendemos não se ter poder algum – sobre nada que nos concerna! É a hora das perguntas incertas. É a hora do limbo! O limbo sem flores e o céu azul que poetiza o fim da vida!
Debrucei-me sobre seu pelo macio, cor bege, branco e fumê, um pelo precioso só comparável a um casaco de vison. Aceitei todos os pensamentos que emergiam, rezei pela sua alma – por imaginação – não por certeza de que existisse ou que ela ia dirigir-se ao céu.
Debruçada naquele universo ainda fechado sobre mim, nasciam frases, palavras, pensamentos completos de como descreveria o momento ali vivido. Senti-me culpada por não pensar mais nela e sim em meu sentir universal. Eis que, agora, escrevo sem meta nem rumo certo. Sou incapaz de descrever a beleza e a paz do momento: confessava meus sentimentos para Lola: escrevia para ela saber quem eu sou.
Descobri que existe um crematório da prefeitura onde todos os cachorros são cremados juntos e outro particular que incinera o animal sozinho. (Mesmo acreditando que, na hora da cremação outras almas se misturam e que ao receber as cinzas estarei amorosamente jogando as desconhecidas na companhia da Lola, em um bonito lugar, optei pelo particular.) Um sentimento irracional, mas tranquilizante: ela era única, e minha. Não ficará a caixinha sobre a lareira para me lembrar de que existiu. Desnecessário. Na hora de confirmar a cremação lembrei que tenho fotos dela no celular- um cemitério de fotos – onde permanecerá entre centenas de outras fotos, uma forma pós moderna da lembrança!
Lola está agora deitada no corredor de pedras frias – odeia lugares quentes – seu corpo voltado para meu quarto – esperando-me acordar. Aboleta-se ao lado do chuveiro para ouvir a água correndo, – elemento preferido dos labradores. Volta para o piso frio, dorme e todos da casa pulamos por cima dela a não ser quando seu paladar ouve que alguém está na cozinha e faz um burburinho com qualquer papel; não se achega por amor, ama comida! Deita-se em frente ao fogão ou à pia, aos pés de quem está ocupado com afazeres, olhar ávido, atrapalhando; é preciso desviar dela novamente.
Cachorros gostam de lugares com humanos por perto e assim, como um ventríloquo, eu pergunto e respondo por ela. Com minha bolsa a tiracolo, Lola se vira para o lado oposto da porta de entrada e mostra o seu traseiro, atitude que imagino estar ela ofendida por eu não lhe dar a contínua atenção que demanda. Aceito sua possessividade e malcriação porque é Lola, mas é curioso: não aceitamos quando este comportamento é humano e achamos muita graça quando é de um animal… Por não saber o porquê, volto o quanto antes como mãe aflita por deixar seu filho só, certa de ter interpretado corretamente o seu olhar e reivindicação. Ao abrir a porta só consigo uma passagem estreita. Lá está Lola, encostada – do jeito que a deixei – impedindo minha entrada. Ah! Quando em casa, ela, como uma lady sentada, cruza educadamente as duas patas da frente contemplando o espaço ao meu lado. Mal humorada com estranhos, ela é também guarda-costas. Não morde. Seu porte e voz são suficientes para assustar qualquer um!
Estes hábitos triviais e cotidianos que aqui conto é porque minha voz assim pede. São visões no vazio, marcando seu contorno e presença. Lola, ausente, agora segue, impalpável, os meus hábitos e não mais eu os dela. A SAUDADE chega no tempo presente.
Acabo de passar em frente à caixa de seus biscoitos, está inacabada!
Hoje, domingo, estes hábitos corriqueiros, ainda tão vivas imagens, se confundem com seus olhos sem mais brilho e um olhar que parece perguntar – ou dizer – algo que não entendo, quando a caminho do veterinário. Quero acreditar em várias possibilidades, mas vou apenas guardar o seu olhar triste como se refletisse a minha profunda tristeza: Lola reconhecia cada um dos meus estados de espírito!
Faz algum tempo que já não andava mais e por sorte encontrei Adriano, um homem forte, de alma generosa brasileira, que começou a carregá-la para a calçada.
Na sexta-feira, eu lhe ofereci uma sopa de legumes, já não comia ração – sorveu avidamente e ressuscitou! Os olhos brilhando. “Era fome mesmo,” deduzo, feliz, mas… foi o Canto do Cisne*: no sábado foi apresentada à morte.
*Expressão usada quando, antes do “último suspiro”, o doente nos ilude e apresenta um repentino acordar de saúde como que dizendo: vocês se enganam, já estou curado!
Não aceitamos o seu adeus. Gostamos de nos iludir quando amamos. No meu sentir, o doente está nos presenteando. Acho que o canto do Cisne pede para que guardemos a sua imagem ainda com a vida acesa.
O desejo de acreditar nisso é tão grande quanto o tamanho da perda no dia seguinte.
A vida anuncia a morte!