Um escritor busca inspiração ou no passado ou no presente acontecendo. Atualmente, os textos são enviados para um site que nada mais é do que um daqueles antigos arquivos de aço onde memórias e lembranças escritas eram guardadas em pastas suspensas.
Hoje, esta escritora revê, no seu arquivo, um texto no qual propõe ao leitor que não confunda o sentido da palavra lembrança do passado com a intensidade emocional com a qual escreve memórias presentes.
Ela lembra,
Ela lembra, na tenra idade, dos sentimentos conflituosos, em confronto com a realidade circundante.
Ela lembra dos pais culpados, dos amigos infiéis, das admoestações sobre comportamentos e professores persecutórios. Das aulas chatas e obrigatórias.
Ela lembra da não inserção no mundo do outro.
Ela lembra do abalo sísmico do não pertencimento.
Ela lembra dos pensamentos pecaminosos e a insistente infiltração do certo\errado, bom\ruim, feio\bonito no cerne da sobrevivência.
Ela lembra da revolta latente, infiltrada pela combustão das certezas absolutas.
Ela lembra do mundo tornando-se progressivamente agressivo, perfurando as frágeis camadas de pele, ansiosas por respostas desejadas.
Ela lembra a inteligência suficiente, a crítica beligerante, inquisidora na defesa de ideais.
Ela lembra do coração ao léu.
Ela lembra dos sonhos que a assustavam. Defendia-se do medo infligido dos fantasmas, aéreos, aprendeu como se defender, atenta às mudas e potentes vozes.
Ela lembra que desconhecia a tristeza, a perda, os amores frustrados, enfim, os conhecimentos suficientes para uma alma continuamente em construção.
Ela lembra que não deixou amadurecer a sua memória. Estacionou. Se confundiu nas lembranças que chegaram vagas, fracas, opacas. Semi mortas!
Ela lembra o tempo envelhecido, alojado nos músculos, nervos e ossos.
Sua memória no presente,
Sua memória vive nas margens ressecadas das lembranças que deixou, revisitadas, nas esquinas bem iluminadas da jornada.
Sua memória chega sem saudade.
Sua memória sabe o dia, mês, ano e década em que viveu, sabe se choveu ou fez sol naquele dia em que foi amada ou deixou a janela aberta para o sublime na natureza.
Sua memória traz uma coleção delas, umas chegam aprazíveis, outras menos.
Sua memória fala de sentimentos e não de “causos” lembrados.
Sua memória sente os campos, outrora minados, pontiagudos, do passado longínquo.
Sua memória descansa em paz nos sítios prazerosos da maturidade; descansa na encruzilhada dos vários tempos
Sua memória traz para o presente, os criativos conflitos vividos sob o jugo das aflições e seus silêncios misteriosos.
Sua memória gosta de reviver momentos memoráveis.
Sua memória não distingue o brilho da memória inesquecível daquela menos intensa ou mais dolorida, são igualmente reluzentes: holofotes induzindo a um caminho.
Sua memória não é uma metade de si mesma, ela sobrevive por inteiro, intensa e cega, lá onde o amor, a perda e o ódio convivem.
Sua memória faz renascer o momento do maravilhamento de existir e da renovada esperança de ter vivido algo inédito, único, que tão somente a ela pertence.
É possível, sim, descobrir nos entremeios da vida, nos espaços entre linhas, uma doce e delicada noção de impotência e consequente visão sagrada do mundo e da vida.
Excelente!
Revolta latente infiltrada na combustão das certezas absolutas é o q sofre toda criança! E adultos também! Muito bom!