Um domingo de sol radioso. Limpo como nos dias em que, pela janela da casa de campo da família, vislumbrava os Alpes Austríacos acima dos campos arados. Deixou de divagar ao ver, na orla da cidade, o Corcovado e os braços do Cristo abertos para o mundo e, quem sabe, só para ela neste momento.
Sentia saudades do companheiro que foi embora da sua casa.
Ao olhar para a direita, um corredor com quatro portas laterais. Uma do banheiro social, outra de um quarto, mais uma do escritório e finalmente a porta do quarto do casal. Pairava um silêncio muito diferente dos tantos que por ali já haviam ecoado por um tempo que se dizia infinito. Era um silêncio vazio dos hábitos. Uma porta que não fechava, o vapor do perfume, a cueca dependurada, o copo com a escova de dente vazio.
Neste corredor havia ainda dois banheiros contíguos; um para ela e outro para ele. Quando os chuveiros estavam sendo usados simultaneamente, ouvia-se a água do chuveiro do outro. A cada vez, ao som tão habitual, ela imaginava a água quente escorrendo pelo seu corpo ensaboado, envolvida em vapores de sensualidade. Ao som dos velhos canos que rugiam como um velho leão, ela sabia que o banho havia terminado. Sabia-o ainda nu, a pele exposta.
Saber que este corriqueiro hábito não voltaria causou-lhe a sensação do vazio absoluto, ela uma silhueta de si mesma. Um contorno sem fígado, pulmão, coração, rins. Algo parecido com um prédio cujas paredes foram implodidas, fumegando uma nuvem de cimento e areia restando apenas as sua estrutura de aço. Para quem sabe, o prédio desmoronando, cega quem olha.
“Que destino competente me foi reservado“, pensou subitamente, voltando o olhar para a Baia da Guanabara. “Teriam sido as moiras tão ardilosas para apresentar a mim destinos distintos entre eles para que, por fim, hoje, eu entendesse a razão do Eu Ser?“
Elas teceram o dia da sua deportação para o campo de concentração quando, sem aviso, aconteceu a maior de suas perdas: a juventude, a segurança e a família. Depois, na volta à Berlim, sua cidade destruída, não era mais a dela. A vinda para o Brasil com disposição para incinerar suas memórias, único desejo e determinação sem resultado. Estas teimavam em voltar murmurando, a cada vez que o destino mudava seu rumo, como neste momento de sensações clarividentes.
O homem nu não mais tomará banho ao lado.
Os canos deixarão de rugir.
Linda narrativa a de uma mulher que perdeu seu amor. Entre os Alpes austríacos e o Cristo Redentor, entre Berlim e as moiras, a narradora nos leva aos meandros dos perfumes que não mais existem, da pele nua que não vai mais tocar. Muito triste, muito lindo.
Querida Sylvia, obrigada fez muito bem a minha alma! Beijos
Lindo texto
Mané que bom ter você me seguindo. Beijos