A toalha engomada, as cadeiras incomodas de espaldar alto, as longas esperas até a travessa de comida chegar até Sahra, o tintilar surdo dos cristais, o incandescente brilho das pratas e um tecido de parede, salvaram-na de um trágico destino.
A sala de jantar era grande e iluminada por um castiçal de 8 lâmpadas com um chapeuzinho em cima de cada uma.
Na família de Sahra, burguesa de Berlim dos anos 30, filhos não eram para ser vistos nem ouvidos a não ser na hora das refeições e somente com autorização paterna. Restava aos filhos encontrarem, cada qual à sua maneira, sobreviver aos jantares diários, sentados entorno do que parecia à Sahra ser uma vasta estepe coberta de neve bordada. Seu pai, invariavelmente jantava de terno e gravata presa por uma presilha dois pontinhos brilhantes incrustados para serem os olhos de uma cobra enrolada. Ele sentava-se numa ponta da mesa e a sua esposa no seu espartilho e gola de renda, na outra ponta. Nos dias das grandes festas judaicas, sua mãe acendia as velas e seu pai rezava lendo no livro herdado de seu avô. A família Wilheim era uma família judaica alemã, total e completamente assimiladas na cultura alemã ariana mas, o espirito da religião, nestes momentos de luzes e intimidade calorosa, evocavam suas raízes. Sahra desgustava a noção de que pertencia à um lugar e família. Esquecia-se que nos dia sem festa, a hora do jantar era um tormento diário.
A sala era forrada de tecido nas quatro paredes. O tecido composto de frutas de diversos tamanhos e origens exótica, dentro de pequenos cestos de palha que exalavam cores e aromas, preenchiam os vãos da fantasia de Sahra, onde o tédio predominava. Era para as paredes que Sahra se voltava quando sentia o desejo eminente de não ser ela que estava ali. Neste momento se dava conta que tanto o tecido quanto ela e seus irmãos eram uma e só indissolúvel mancha de cores para os seus pais, colados à parede fazendo vez de moldura num quadro. Observava a gama de cores suaves borradas de marrons e beges, onde a cor verde da melancia, caída ao lado da cesta, ressaltava. Sahra se alimentava dos sucos e da carne das frutas, indagando-se em que terras nasciam tais espécies inatingíveis. Os tons ocres e amarelos lhe traziam os ventos e camelos do deserto enquanto o vermelho carmim, predominante nas maças despertavam a luxuria proibida dos seus sentidos e os nãos que recebia como resposta para tudo que queria fazer. O marrom do contorno a transportava para as cabanas de índios e negros cobertas de palha que havia visto nos livros dos grandes descobridores de terras selvagens.
O tempo assim quis que o tecido amadurecesse junto com ela,
fazendo seu estrago nas frutas da cesta também. O tempo fez com que o desenho fosse se esmaecendo, mas não o suficiente para que ela não o lembrasse com as suas cores com vida.
Foi com esta imagem que Sahra sobreviveu à ultima grande guerra sustentada, durante o cativeiro, com a lembrança de sabores nunca experimentados das frutas pintadas no tecido da sua sala de jantar até o momento em que, o sofrimento físico esgotou o seu poder de regeneração. Jogou países distantes, frutas e sucos fora para dar lugar à devastação e o vazio.
De volta à Berlin em busca de algum pilar familiar onde se encostar procurou sua grande casa branca numa cidade devastada sem mais nome e endereço.
Carregada pela lei da gravidade – hábito adquirido no campo de concentração- e um véu de nevoeiro a lhe cobrir o rosto como aquele que cobre o rosto das noivas judias no dia de seu casamento.
Pressentiu que a casa de outrora poderia ter sido ali, onde parou, a placa da rua caída encima de uma viga. Vagou por entre os escombros assombrados na esperança de achar algum sinal que indicasse ser mesmo a sua casa. Poderia também ser a dos vizinhos, das suas amiga Lise e Dorotéia.
Se pela concentração absoluta ou pela intuição, lentamente começaram a emergir vagas sensações como o rufar de tambores destilando, parcimoniosamente, sons em surdina que aumentavam a medida que adentrava no espaço desolado.
Sufocou as imagens e o turbilhão de sons misturados aos sentidos, formas e cores, talvez o vértice de um embrião de vida que iniciava uma renovada trajetória.
Ali, desequilibradamente em pé como um pássaro em busca de pouso num quebradiço galho sem folhas, Sahra desejou não ter experimentado o limite do sofrimento. Desejou que o passado se tornasse uma passagem muito estreita, entre dois penhascos, no alto armas de fogo apontadas para ela como alvo. No desfiladeiro, a memória tinha que ser apagada.
Com estes pensamentos tétricos no coração, algo de extraordinário aconteceu.
Enquanto perambulava, eis que ela se depara, como se fôsse uma flor murcha nascida na rocha, um pedaço do tecido de frutas despontando debaixo de uma pedra.
O lustre de cristal se iluminou,
A toalha engomada outrora estepes brancas voltou a ser,
A prata reluzente piscava intermitente,
Os pratos de borda dourada expandiram-se em círculos luminosos. Pais e irmãos voltaram a se sentar entorno da grande mesa. Avidamente, na sua imaginação, descascou as bananas, comeu o maracujá, chupou as uvas ,mastigou a melancia, mordeu a maça e cuspiu os caroços .
Sahra engoliu, uma por uma das frutas do tecido junto com o strudel de maçã quente com chantilly dos dias especiais. Aspirou o suspiro de alegria e desejou trazê-lo junto do poço da sua vida anestesiada.
As frutas pintadas do tecido eram novamente suas, só suas porque só ela as imaginou suas. Naquela sala de jantar em ruínas Sahra as convidou para continuar acompanhando sua vida, como outrora, quando as carregava dentro de si, para a escola, para a beira da cama e do parque.
Esfomeada, as reminiscências haviam saciado corpo e alma.
Sahra adormeceu sobre os escombros da solidão, protegida por um trapo que um dia já fora pano.