Quando na calada da noite, apenas o uivo dos lobos amedrontava a mulher viúva e sem filhos, ela roubou a enxada de um sítio vizinho. Consciente de sua contravenção, decidiu, no sábado, dia de levar a colheita dos alhos-porós à feira, que confessaria ao padre a violação do oitavo mandamento.
Margarida, a velha mula da viúva, conduzida com cansada paciência e maestria pela centenária sitiante, a passos morosos, antes do sol raiar, puxava a carroça repleta do vegetal ensacado em panos de algodão umedecidos, limpos da terra. A viúva sem filhos, para não perder o rumo que a levaria para a feira, tinha como biruta uma margarida amarela presa no arreio de Margarida.
Ela havia lido no Reader ‘s Digest, que recebia pelo correio, que o pistilo das flores seria uma analogia ao órgão reprodutor feminino e, a partir desta informação, lhe pareceu lógico prestar atenção nos pistilos de suas flores do jardim. Para lembrar tal revelação, tricotou uma margarida amarela e cravou um pistilo bordado em marrom, que Margarida, orgulhosamente, exibia em seu velho arreio.
Quando não se dirigia à feira dos sábados, a solitária viúva cultivava flores na sua jardineira abaixo da janela sem passar um dia, ela conferia, de manhã ao acordar e a noite ao deitar-se, se as flores e seus órgãos reprodutores, os pistilos, estavam dormindo, ou se estavam vivos ou ainda, se as pétalas já estavam querendo despontar.
O tempo passava e a velha viúva e sua mula Margarida não precisavam ser informadas em qual estação do ano se encontravam: a velha sabia que o outono chegara, pois os pistilos das flores começavam a perder a vitalidade; já Margarida, por sua vez, sabia que o verão acabara, pois podia puxar a velha carroça de madeira com menos força visto que a produção dos alhos-porós diminuía consideravelmente pouco antes do inverno chegar.
Para vender o resultado semanal de sustento das duas, a viúva e Margarida tinham que seguir por uma estrada de terra. A velha, confiante nos passos pesarosos da exausta mula, as rédeas displicentemente soltas sobre seu dorso, seus olhos fixos na margarida, presa no arreio como biruta, certificava-se estar na direção da feira.
Neste sábado, contudo, nada lhe contavam os plátanos à beira da estrada; não via os campos cultivados onde trabalhavam camponeses enrolando a palha do trigo amarelo e seco que deixavam enfileirados para servirem de forragem para o gado no inverno. No entanto, nesse dia algo dentro dela se arquitetara. Não saberia avaliar o porquê daquela dolência em ritmo compassado como se vindo do além. Seu corpo estava leve, o ralo vento dos plátanos e o ar empoeirado pelos grãos de trigo triturados nela resvalaram como um xale de carinho.
No meio desta bruma flutuante de cores apagadas, recordou-se, sem remorsos: Deus certamente a perdoaria pois não foi a necessidade urgente que brotou no centro de seu útero vazio que a impeliu a cometer o pecado ao roubar a enxada do vizinho para abrir uma cova?
Não foi a urgência que a impeliu a abrir uma cova para um filho que seu útero infértil não pode gerar?
Do mesmo modo carinhoso que cavara o leito de terra para as flores abaixo da sua janela, abrira uma cova para enterrar o filho que nunca nascera. A velha sentia uma urgência que não sabia como conter: era necessário criar um lugar para que sua mente, prenha de um filho que não existia, encontrasse paz.
Sobre a cova, a velha viúva sem filhos plantou um canteiro de margaridas de pistilos marrons, A cada outono ela retornava para prantear o filho enterrado neste túmulo ausente de corpo, certa de que na próxima primavera muitas outras margaridinhas de pistilos marrons ali nasceriam.