Antes que a Rua Augusta, em São Paulo, fosse destruída pelo ímpeto construtivo alucinado de prédios que parecem encostar no céu, passei por uma loja de bolsas, que outrora fora a Casa Yara – a minha lanchonete nos anos 50.
Naquela época, a Rua Augusta era uma via de lojas elegantes e prósperos negócios. Na esquina da Augusta com a Oscar Freire foi construído o primeiro cinema de bairro, cuja novidade eram as poltronas listradas em preto e branco, largas e confortáveis. Chamava-se Cine Paulista. Ao lado, a primeira casa de hot dogs fornida com batatinha frita que vinha numa cestinha de papelão igualmente listrada como as poltronas do cinema.
Este era o ponto das moças de bem, a quem era permitido, nas tardes de sábado, ficar à espera dos moços, donos dos carros importados e carteira de motorista, que subiam e desciam a Augusta, devagar, elogiando ou não as moças casadoiras.
Mencionei a casa Yara, uma confeitaria, ao qual eu era levada, aos sábados, pelos meus pais, para comer um doce ou como prêmio por algum bom comportamento ou para comemorar uma data especial.
O meu doce preferido era o chamado “tête de nègre”. Eram duas almofadas de bolo emergidas no chocolate e entre elas uma montanha de chantili. Este doce brilhava como a careca de um homem negro.
A lembrança me faz salivar a boca, mas reconheço que não devo mais referir-me a uma careca de negro, e sim a uma careca de preto.
No entanto, pergunto: como trazer a imagem poética da deliciosa cobertura de chocolate de um doce recheado de chantili aos olhos de uma menina gulosa de 12 anos?
Como contar, hoje, que há sessenta e cinco atrás, a palavra negro expressava uma característica de raça enquanto preto era uma cor de lápis, de tinta, de esferográfica. Como fazer entender, nesta minha lembrança, que o doce tete de negre é austríaco de origem, mas os franceses o traduziram assim para o mundo todo e que este doce ainda está exposto nas docerias?
Os dois tempos, passado e presente, me alertam que, enquanto as transformações ocorridas entre o tempo e o espaço se construíam, eu não fui capaz de acompanhar as mudanças fulcrais de hábitos e costumes intensamente presentes no meu dia a dia. As mudanças ocorreram sem a minha participação e não porque envelheci sessenta anos e sim porque o mundo se adiantou ao meu tempo de compreensão!
Os escritores devem adaptar suas lembranças aos movimentos – que apoio – de inserção social de um doce?