Nossa alma não para de nos fazer perguntas. Será a curiosidade que a impele a nos perguntar quem somos? Desconfio que a resposta jaz nebulosa em algum lugar que desconhecemos e por isso corremos atrás, cada um com a potência da sua necessidade.
A resposta não precisa coincidir com fatos. A alma aceita respostas na versão das sensações. Porém, incansável, ela intensifica a pergunta sobre qual é nosso lugar nesse mundo, talvez porque assim está nos obrigando chegar mais perto ao quem somos.
Pensando assim, vai aqui uma tentativa de responder à pergunta ao voltar de uma viagem à cidade de Praga. Preciso confessar que, do alto da minha idade e experiência de vida, a resposta me pegou de “calças curtas”, como dizem.
A busca do seu lugar – e não um lugar – no mundo passa forçosamente por nossos antepassados e a história de suas vidas, mas como não falam mais, só nos é possível reconhecê-los através de impressões colhidas no local onde viveram e de memórias cor de sépia. Poderia ter ido buscar informações em arquivos e bibliotecas, mas deixei as sensações colarem seu selo. À exatidão das informações, preferi ficar com a impressão causada pelo desaparecimento por debaixo da terra onde quer que meus antepassados estejam enterrados e qual lapide os identifica.
Eu os conhecia pela galeria de autorretratos, das roupas indicando a época em que viveram e dos objetos que foram passando de um herdeiro para o outro até tornarem-se relíquias que insistiam em informar que “o sangue que corre em minhas veias é o mesmo que dos antepassados!”
Porém, como ainda estou viva posso contar a minha versão da história mesmo se o seu tempo já está vencido e eu, enganada em termos factuais, pressenti que não são os mortos que nos ocultam suas vidas e sim os vivos!
Eu me pressupunha ser uma árvore sem raízes, sem lugar onde fincá-las. No silencioso espírito dos cemitérios, “vi as minhas raízes”, que um dia foram apenas tocos e que, século após século, passaram à ser árvores. Ao criar esta alusão, um simbolismo, senti que meus pais quiseram ocultar de mim o sofrimento que meus e seus antepassados sofreram e que lá estavam enterrados: os judeus! Não queriam deixar como herança a continuidade, de geração em geração, da pecha de povo perseguido.
Foi como passei a não ocupar o lugar de filha, neta, sobrinha, prima, sobrinha neta, prima de terceiro grau do Holocausto. Sou uma bastarda do Holocausto.
Igual à minha mãe, meus antepassados são checos enquanto do lado do meu pai, são alemães. Ambos foram judeus, ambos imigrantes fugidos de Hitler. Saíram ilesos e com seus bens intactos ao não terem que se identificar com a estrela de Davi costurada à seus paletós.
Cresci no Brasil dividida por um enigma: sempre soube ser judia filha de estrangeiros tanto quanto minha vizinha ser católica filha de imigrantes italianos, mas perguntei-me por que não fui criada no âmbito do judaísmo religioso e na comunidade de meus pares? Porque meus pais optaram pela assimilação assim como os seus pais o fizeram por sua vez. Tradição continuada, também em minha casa não havia vestígios de um lar judaico.
Criança, observei um número tatuado no braço de um prisioneiro de Auschwitz em visita aos meus pais. O fato fez, que décadas depois, ao levar meus filhos ao Play Center era necessário passar o antebraço por um aparelho identificador. Era um número tatuado com caneta.
Recusei-me!
Por que será que tal aversão é ainda lembrada aqui?
Ao conhecer as razões históricas, tanto dos perseguidos como dos perseguidores, à época, as informações só despertaram em mim a concepção de que o mundo é mau!
Acredito hoje que me isolaram do sofrimento ímpar de um povo, de sua história de desenraizamento, da perda de identidade e de seu chão, porque acreditaram que assim eu passaria a não ser assombrada pelo medo do desterro da terra onde nasci, cientes que desterrados são como árvores tombadas, as raízes mortas, sem enterro no chão pátrio. Meus pais acreditaram que, ao ocultar o sofrimento cravado a ferro e fogo, literalmente, em qualquer canto onde se conta a história da perene perseguição aos judeus, eles manter-me-iam afastada do sentimento de apátrida que eles próprios certamente sentiam vivendo aqui em uma terra emprestada, o Brasil.
O racismo e o preconceito exemplificados sob forma de horror na história recente, não foi, não é e nunca será um acontecimento isolado na História da Humanidade. O Holocausto aconteceu – por mais que alguns poucos tentam negar, mas milhares de outros houveram também!
Este pensamento trespassa meu profundo sentimento de compaixão para com os errantes que hoje vagueiam pelo mundo, fugidos de guerras infames, proibidos de encontrar acolhida em países que não lhes pertence. O medo e sofrimento deve ser aterrador.
Temos que reverenciar todos os mortos em guerras não importa a razão, reverenciar mortos por injustiça divina, judeus e não judeus, seres humanos de todos os credos. Sim, fazer com que o mundo jamais os esqueça. Devemos à todos as vítimas mortas pela barbárie humana, perseguidas e abusados por ganancia e pre- julgamentos, devemos o mesmo reverenciamento à TODOS OS HOLOCAUSTOS que já houveram: ações de bárbaros criminosos impetradas à inocentes por conta de Preconceitos.
Ao privilegiar, sem trégua, a liberdade de pensamento permito-me sentir, e muito, por todos os povos perseguidos que, de um dia para o outro, são ou foram obrigados a perder suas referências comunitárias, o sentido de pertencimento e de seu lugar no mundo, a sua terra deixada, a nova identidade jamais dominada.