Hoje, dia 30 de março de 2020
Enquanto lavava louça com sabão e água fria – depois despejava água fervendo para não ficar o cheiro do detergente, – pensei em confessar vários tópicos que jamais confessaria não fosse o confinamento. O passado foi emergindo como as bolhas de sabão na pia.
Sou do grupo de risco e como tal meu kit de sobrevivência e o álcool 70%. (Calma! Bebo vinho tinto – adoro o Pinot Noir – ao jantar junto com uma sopa e um pedaço de pão torrado com óleo de oliva e sal do Himalaia. Recomendo). Paninhos e luvas se esparramam pela casa e não uso a máscara porque não converso com pessoas – limpo o celular depois que liguei para alguém perguntando se está bem!
Mas a primeira confissão que me ocorre, é que não gosto mais de cozinhar! Quando as restrições se tornaram absolutamente necessárias, fiquei contente. Ah, que bom! Vou poder voltar a cozinhar como antigamente quando jovem. Corri para a livraria e comprei um livro super a propósito para a situação: Cozinha Para Um da Rita Lobo. Ele consiste em Receitas descomplicadas, modernas, para sujar um único recipiente. Mas, o que aconteceu nestes dias: meu contentamento inicial sumiu! Ficou a memória dos cursos que fiz, das receitas da minha mãe e avós. Lembrei em especial de uma delas cujo título, no meu velho e manchado livro de receitas, fala dos Biscoitos vienenses da Rosa. Rosa era minha avó. Deus como eram bons! De chocolate, desmanchavam na boca. Tenho outra receita que se chama Geleia de Uva da Jardineira. D e fato, houve uma paisagista na minha vida que cuidava lindamente do jardim meio inglês meio tropical que criou. Anina era o nome dela. Receitas devem ser passadas e sempre dou um nome para lembrar quem foi a pessoa desapegada que as ditou para mim. Há pessoas que passam a receita errada. Recebi uma assim, seu nome: suflê à la Mariângela. Fui tentar e deu tudo errado. Ele não virou suflê e sim uma água com gosto de couve flor. Na casa dela não tinha prato mais delicioso! Guardei a receita de birra. Para lembrar como Mariângela era má.
Mas estas são histórias muito antigas com lembranças presentes. Quando fazia bolos decorados para meus filhos também gostava de criar histórias para as suas festas de aniversário e o bolo era enfeitado com o tema do dia. Eles ainda se lembram e eu ficava feliz com minha arte caseira. Hoje cresceram e não faço mais bolos.
A outra confissão é sobre o trabalho de casa em si. Fui criada, como já mencionei ontem no meu diário, com uma hoje designada: ajudante do lar para todo serviço – mas prefiro usar o nome politicamente incorreto: uma empregada, igual a qualquer outra que trabalha em uma fábrica. Na época ela se chamava Cida, hoje, outra, se chama Maria. Cida me criou, como dizem, e Maria está comigo há 36 anos. Certamente acomodei-me à sua comida caseira e deliciosa. Jamais poderei fazer igual. Maria tem quase a minha idade e neste tempo de vírus deixou de vir, portanto, sou eu que preciso organizar a roupa para lavar, o chão que precisa varrer, o lixo que precisa jogar fora e, sobretudo, preparar a comida para amanhã. Preciso ou não fazer compras? Quem as fará? Verdade que tenho um motorista de taxi que me serve há anos e que no momento está sem trabalho e ansioso para que o taxímetro mostre alguma corrida. Desinfeta o carro, guia de luvas e vai ao mercado de máscara. Mas o ponto alto da minha confissão vai chatear alguns leitores: cheguei à conclusão que empregadas ganham pouco! Por que? Eu fui para a escola e ensinaram-me a organizar o dia, as tarefas, hora para estudar, hora de lazer, hora de dormir, hora de guardar a roupa, não se atrasar porque a comida vai esfriar. Aprendi a guardar minhas coisas em seus lugares predestinados. Adulta, aprendi como tocar uma casa onde não podia faltar nada. Zelei administrativamente a subsistência, por anos, de uma família numerosa. Como é que Maria, sabe fazer tudo isso muito melhor e mais rápido do que eu, anos a fio, sem nunca deixar transparecer cansaço? Ou ela é um fenômeno de organização ou eu sou uma desorganizada arrogante e não sabia o quão é extenuante quando se trata de fazer a empregada em seu próprio lar.
Claro, fui criada com privilégios em uma casa de classe média, (o Brasil empobreceu muito de lá para cá!) mas nada justifica eu não gostar de fazer cama e lavar meu banheiro. Cida estava lá! As Cidas e Marias não reclamam de cansaço, têm ônibus cheio para pegar, chegam em casa e precisam fazer os mesmos trabalhos que fizeram em minha casa, provavelmente com o mesmo cansaço e as mesmas dores nas costas do que eu.
(Dirão os maledicentes: claro, ela nunca foi empregada doméstica, sempre pode pagar alguém para fazer o serviço!)
Não chega a ser uma mentira, mas não é uma verdade tampouco. As coisas são um tanto mais complexas.
Porém precisávamos de um vírus potente como o Covid-19 para parar de correr atrás do tempo e nos dar um espaço para olhar para dentro e ver o que está acontecendo com nossos pensamentos que dormitam no escuro.
Confessar para nós mesmos pequenos segredos percebidos enquanto se lava a louça. Não deixa de ser uma terapia forçada!
Meu Deus! Enquanto escrevia esta página, sentia um cheiro de queimado.
Achei que era de fora, pois deixo a janela aberta para ventilar como orientam os técnicos em vírus. O zelador tocou o interfone para saber se algo estava queimando na minha cozinha. Juro! Dei um salto na cadeira e lembrei que havia colocado a mandioca para cozinhar. Juro novamente: as mandiocas viraram carvão de churrasco e a panela foi-se!
Voltei para lhes escrever sobre o que aconteceu e nesse instante começou o panelaço. São 20.30. Junto e misturado, o protesto chega com a voz longínqua de Frank Sinatra cantando “My Way”. Não deixa de ser uma música bem a propósito da queimada do meu jantar, uma sopa de mandioca com legumes verdes. Este é o meu jeito de enfrentar o confinamento. “Do meu Jeito”!
Abraço amigo para todos.
Adorei! Conheci e conheço muitas cidas e Marias, minha mãe foi uma Maria! Tive uma colega que tem uma Maria e não dá o devido valor! Tenho outra colega que a mãe também e uma Maria e as crianças a adoram!! É realmente impressionante como conseguimos alterar nossa visão das coisas a partir de mudanças em nossas vidas! Adorei o seu texto!
Cara Ines,
Seu comentário é absolutamente a proposito do texto.
Fiquei realmente contente com seu retorno. Muito obrigado.
Um escritor sem retorno é como uma rua sem saída: dar meia
volta ao que, ele escritor , achava que seria, sem o retorno do leitor
ele começa a duvidar se de fato é um escritor. Humanos são vaidosos!
Sim, Cidas e MArias , no caso foi sua mãe a Maria que lhe criou, certamente
com muito esforço e pouco tempo para dar na sua própria casa por ter que dá-lo
na casa “da patroa”. Você se ressente disso caso aconteceu?
Fiquei muito sensibilizava com o fato que v. vem percebendo que as mudanças,
por conta de acontecimentos, são transformadores. A atenção é constante, mesmo
quando tudo voltar “a ser como antes”. Mas quem as percebeu, nao voltará nunca
mais a ser a pessoa que um dia foi. É o processo de transformação e este leva à uma visão
de mundo. Abrem-se portas dentro de nós. A leitura é uma delas.
Fique bem e me escreva sempre que terei o maior prazer de responder.
um abraço reconhecido,
Bettina
Amei o texto. Levou -me a infância e tantas outras lindas lembranças.
Cara Marcinha,
Estou envergonhada ao somente hoje responder ao seu comentário, quase trinta dias depois.
Atrapalhei-me de uma maneira que perdi textos, retornos e comentários que pareciam irrecuperáveis.
Uma alma caridosa ajudou-me, depois de longa procura, a achá-los mas nao achei o meu retorno que fiz quase em seguida ao seu comentário.
Hoje te respondo atrasada, mas contente por ter “achado” você!
Você foi uma das primeiras a me retornar e… retornar tão bonito: lembranças!
Como foi bom para mim saber que toquei justamente nesse ponto! É muito gratificante para o escritor quando isso acontece. Quero agradecer imensamente seu apelo à sua infância feliz.
Este é o objetivo principal de um escritor: tocar o leitor de alguma forma e se possível, positivamente.
Conte-me um pouco de você e de suas lembranças. Você é casada, solteira, filhos?
Profissão? Do que mais gosta hoje? Tá sendo muito difícil passar por este momento de coronavírus? Não mais acontecerá eu deixar de te responder!
Espero que v. não tenha desistido de ler os demais textos que falam, entre lembranças e reflexões, sobre o nosso cotidiano recolhidos em nossa casa. Espero que você goste dos demais textos também.
Um forte abraço agradecido
Bettina
Belo texto.
Eu fui empregada minha adolescência e juventude. O pior de tudo não era tudo que tinha de fazer; mas o registro na previdência que nunca tive. Demorei para aposentar e recebo apenas 1 salário mínimo. O que eu passei ninguém vai entender a não ser que tenha passado a mesma situação.
Como vai, Gloria, nesses tempos difíceis de confinamento?
Obrigada pelo seu retorno.
Conte-me um pouco da sua vida.
Como vive com a aposentadoria sem ter sido registrada por anos? Ainda bem que a lei apareceu para as empregadas domésticas.
Qual a sua idade? Tem filhos? Tem mais pessoas morando contigo? O que v. faz hoje?
Leia e me escreva sempre que tiver vontade. Tenho grande prazer em retornar.
Um abraço
Bettina
Adorei mesmo❤️🙏👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Cara Maria Lucia,
Muito obrigada por este seu retorno entusiasmado.
Um incentivo para quem , como você, suponho, está na quarentena. Não é fácil. A vantagem é que nos dá mais tempo de ler!
Escreva um pouco sobre v. mesma. Responderei com muito prazer.
Por exemplo: sua idade, profissão, família, filhos, dificuldades, alegrias e lembranças tanto presentes quanto passadas.
Um abraço agradecido e continue ligada no meu site.
V. viu que há um conto publicado, em capítulos? Escrevi para uma muito querida amiga que já se foi!
Bettina
Olá Boa noite! Meu nome é Veronica tenho 60 anos e moro com minha filha solteira em Sepetiba no Rio de Janeiro e amei ler seus relatos. Virei sua fã! Um beijo grande no ❤!
Cara Veronica,
Também tenho uma filha solteira e mais três mas nenhum mora comigo. Gostaria de ter a companhia de alguém principalmente nestes dias isolados do mundo. Separei-me há 4 anos atrás.
Sou bem mais velha que você. (não chega a ser um segredo para ninguém, mas prefiro que esta confidenciasinha permaneça entre nós… kkk ( Se você clicar nas página BIO e CORP poderá certamente chegar perto da “crua verdade” pelas datas das revistas e deduzir mais ou menos quantos anos tenho hoje e também conhecerá um pouco da minha história de um passado há muito tempo atrás.
Verônica, muito obrigada por suas palavras. Espontâneas e sinceras. “Sou sua fã: “é muito gratificante receber tal retorno.
Conheço muito mal o Rio de Janeiro. Sepetiba é na praia? fica perto da onde?
Gosto muito de saber um pouco da vida de quem me segue ou responde que gostou dos meus escritos.
Qual a sua profissão? Da sua filha?
Como o coronavirus está te tratando?
Parece que no Rio está um tanto menos grave do aqui em São Paulo. Vocês estão de quarentena, trancafiadas em casa? Eu completei, hoje 25 dias. Sou das tais velhinhas de risco….
Mais uma vez, agradeço seu envio e nao deixe de fazê-lo sempre que ler algo que escrevi e gostou.
Um abraço à distancia e fique bem ai junto de sua filha.
sempre
Bettina