10 de outubro de 2020
Querido Corona, Querida Morte
Como vão vocês? Continuam “na sua”?
Eu vou indo bem, afinal vocês meio que andaram me esquecendo e espero que assim continuem. Quero aqui contar que adorei vossa companhia enquanto estive presa no cárcere de uma solitária. Verdade que, por vezes, as paredes transformavam-se em orelhas surdas para as minhas lamúrias de condenada. Mas, na maioria dos momentos, saber vocês muito próximos, me trouxe vislumbres de verdades que só o silêncio e a ameaça da morte podem oferecer.
Silêncio e medo pedem por reflexão solitária, e, assim, fui inoculada por um estado de tranquilidade raramente vivido. O silêncio me protegeu do medo porque trazia consigo um véu que me embrulhava na felicidade. Misterioso, complacente com a agonia que rondava; um silêncio vaporoso, impoluto, ninguém nas ruas para machucá-lo. Eu o vivi bendizendo-o. O sol a iluminar o dia, a lua, a noite. Apenas me pergunto, hoje, se os litros de álcool e as incontáveis máscaras que usei seriam a razão para vosso lentíssimo desaparecimento?
Tenho saudades de vocês dois quando lembro do rastro que, inédito, vocês fizeram acontecer: ruas, lojas, bares e restaurantes cerrados. Nas portas e janelas das casas, pessoas cantando ao som de instrumentos que o vizinho de balcão tocava. Sem urgência de sair de casa e sem acreditar que eu poderia vir a ser uma das próximas vítimas de vossa passagem pela minha cidade, encontrei espaço e tempo para pensar na vida.
A mudez do mundo permite prestar atenção aos pequenos movimentos raramente apreciados e ver, com límpida visão, micro detalhes escondidos. Vocês dois, em parceria, obrigaram-me a pensar com a mente limpa de sons.
Uma delícia!
O silêncio certamente trouxe sensações diversas para cada uma das pessoas mergulhadas em suas cidades ausente de ruídos. Para uns trouxe o tédio; para outros novas experiências! Na ausência de ruídos modernos e antigos senti-me inteira: ordeira e concentrada em todas as páginas que li e linhas que escrevi. O silêncio trouxe verdades desconhecidas, outras ainda em digestão; trouxe algumas razões para as “coisas” e os sentidos delas. Memórias de papel amareladas, fotos de amores ganhos e perdidos. Relações desejadas, mas inconclusas. Talentos desperdiçados. Ganhos conquistados em tantos outros lugares.
Lavando a louça no silêncio, eu refletia!
Refleti sobre a morte infiltrada nas entrelinhas do cotidiano, hora após hora, minuto, segundo quando descia, a galope, fustigando seu cavalo esquelético, a imagem do Cavaleiro do Apocalipse, a caveira sob a capa preta, brandindo sua foice no ar. O Corona invisível, endoidando o mundo, sem resposta para sua existência, defesa e cura, na garupa. Só ela, a morte, é onipotente, onisciente e onipresente. Nunca vi a morte sendo tão falada, escrita e ouvida, e simultaneamente aceita, fadada a me visitar um dia. Gostei de conhecê-la e aceitar a lembrança da foice como um sinal definitivo de sua existência. Ela ceifa a vida sim!
Por outro lado, sorri por nunca ter imaginado que você, Corona, uma mera bolinha de pontinhas aguerridas, pudesse desafiar, tão sem vergonha e remorso, o aparato e o orgulho científico contemporâneo. Uma coisa aparentemente tão insignificante com poder de aniquilar uma nação! (Até ouvir falar de você, havia comprado a promessa de que a medicina me faria viver até os 120 anos!).
Apesar do bem que vocês me proporcionaram, em igual medida não os perdoo: como ousaram ceifar a vida de milhões de pessoas? Enfureci-me não com o poder de vocês e sim dos homens no poder, responsáveis pelo desaparecimento de cidadãos que, podem até “dar um jeito” de como se defender da pobreza trancados em seus casebres de um quarto, contudo, nunca mais perdoarão os responsáveis por frustrarem seus sonhos de um dia vir a perder menos. Perder menos filhos, menos pais, mães e irmãos, perder sempre sem nunca deixar que ganhem em vida. Estes três cavaleiros do Apocalipse – poder, doença e morte – rondam forasteiros “desde que o mundo é mundo”, deslizam através de ruelas e muros escurecidos à espera da próxima vítima, fácil e desprotegida. A ferocidade com que mataram nesse nosso século, porém, é unicamente responsabilidade dos homens de poder, repito, as ratazanas nos bueiros que brigam por um pedaço de queijo para saber quem manda mais. Aqueles que deixaram – como a peste no passado – matar igual por aqui e acolá!
Eu sei que vocês, Corona e Morte, ambos ainda estão em compasso de espera, apesar que enfraquecidos. Contudo, por favor, se é para vocês existirem como uma fatalidade ou contingência, venham parcimoniosamente: um de cada vez!
Mas volto a falar da saudade que tenho do silêncio, os raios de sol adentrando pela janela com cor e sem som e o retorno dos indistintos ruídos da cidade. Preciso dizer aqui, que não cortejo a doença nem a morte e por isso acolhi a volta do barulho inevitável com certa alegria. Gritos, buzinas (ah! que inferno) bares alegres, ruas cheias de gente “liberta” do castigo dos deuses, todos libertos da praga que vocês trouxeram para dentro dos lares deste planeta, um mundo que ainda rodopia sobre si, um tanto parecido com o jogo da cabra cega, olhos vendados procurando a arma que dissipará vocês de vez!
Agradeço, contudo, terem me poupado até aqui como também aportado a possibilidade de aceitarmos uma realidade que gostamos de negar. A verdade única da nossa vida aqui na Terra: a mortalidade da alma e a impotência do Homem perante a natureza!
Saibam, vocês dois, que alimentamos com ardor o desejo que ninguém mais venha a falecer por culpa de vocês, agentes do mal. Saibam que sabemos, todos nós, fadados a morrer um dia, mas que não serão vocês, hoje, nossos assassinos!
Queridos leitores aqui me despeço sob a forma de autora do Diário da Pandemia, mas estarei continuamente publicando, nesse meu site, pensamentos sob diferentes formas de expressão e conteúdo. Gostaria muito que vocês me acompanhassem na leitura dos textos e deixassem seu comentário.
Um abraço carinhoso e obrigado por terem lido meus textos nesse tempo de recolhimento obrigatório.
Sempre
Bettina Lenci