Matéria publicada na Revista Carga, em 24/09/1986
Transcrição
A carga cresce. As dificuldades também
O comércio no Cone Sul está aumentando, principalmente com a Argentina. Mas há vários problemas. E muito sérios
Texto: Fernando Leal
Fotos: Luiz França
O transporte internacional que o Brasil faz com seus vizinhos da América Latina, principalmente a Argentina, aponta claros sinais de crescimento a curto prazo, mas já desponta nesse cenário uma luz amarela de alerta: o intercambio pode esbarrar — também
a curto prazo — nos mesmos problemas que ameaçam o desenvolvimento da movimentação da carga nacional, ou seja, a falta de caminhões no mercado interno, o estado precário da malha rodoviária, uma frota envelhecida, além das dificuldades próprias do comércio internacional — trâmites aduaneiros, determinação da tonelagem por empresa de transporte, segurança da carga e até melindres patrióticos, quando a balança das trocas
pende mais forte para o outro lado.
Neste ano, o comércio Brasil— Argentina deve atingir 1 bilhão de dólares, e 10% desse total — algo como 100 milhões de dólares — ficarão para os fretes. “Mas estamos fazendo esse transporte com uma frota antiquada de caminhões” — alerta Walter Castro da Rocha Filho, presidente da Associação Brasileira de Transportes Internacionais, a ABTI. “Nossos veículos têm, em média, oito anos, quando deveriam ter três, igual a frota de países concorrentes como Argentina e Uruguai”. Isso — raciocina — pode reverter rapidamente “a superioridade que o Brasil tem na balança de fretes e também na exportação”. Nesse ponto, realmente, a vantagem dos argentinos e uruguaios é enorme — ao renovar frotas estão isentos de qualquer tributo, o que no Brasil equivaleria a comprar caminhões sem o pagamento de ICM e IPI.
Não ficam por aí as dificuldades. Na fronteira, a vida também não é muito fácil. “Cada exportação representa uma importação do outro lado, e ao entrarmos no Brasil as fronteiras contam com pouca gente especializada para a análise dos produtos. Não faz muito, por causa de uma operação tartaruga dos funcionários federais, cm busca de melhores salários, cerca de 300 caminhões ficaram parados, sem poder passar, a grande maioria com cargas perecíveis” — conta Rocha Filho, que além de presidir a ABTI dirige também a Transportadora Volta Redonda, a TVR, empresa de 42 anos que opera no Cone Sul com 160 caminhões.
Mercado comum para nações democráticas
O comércio com o Sul do continente deve crescer agora ainda mais após a visita do presidente José Sarney a seu colega Raul Alfonsin, encontro que selou as bases para um maior intercâmbio entre as duas nações e uma espécie de deflagração para o que já vem sendo chamado de um Mercado Comum entre as nações democráticas da América Latina. E esse é um novo fator que chega a preocupar diante das dificuldades atuais.
“Qualquer quantidade adicional conturba o mercado” — avisa Rocha Filho.
É também o que pensa a empresária Bettina Lenci, da transportadora Translor, do ABC. Diante das previsões governamentais que estimam o transporte dc 2 milhões dc toneladas de grãos a partir do acordo Brasil—Argentina, ela diz: “Não vejo, hoje, como fazer esse tráfego. Não temos ferrovia e nem transporte fluvial para isso. Por caminhões, só se for mercadoria ensacada, mas c uma quantidade muito grande”.
Bettina, presidente do Conselho de Administração da Translor, empresa fundada há quase 30 anos, é uma defensora entusiasmada do comércio internacional na América do Sul e está encarando com confiança o acordo firmado por Sarney e Alfonsin, apesar de também ver nesse grande banquete de cargas a falta de talheres e até de assentos para os convidados. É que os problemas, a seu ver, passam também pela falta de caminhões novos no mercado interno e dificuldades no comércio bilateral com a Argentina, que prevê, por exemplo, uso de frota própria da transportadora para operar em território argentino. “Não podemos entrar lá com caminhões de carreteiros, o que baratearia o frete, e temos de ter toda uma infra-estrutura de operação, gerenciamento de cargas e instalações próprias de armazenamento.”
Seus 17 caminhões que transportam mercadorias para a Argentina contam com armazéns cm Uruguaia na e depósitos em Buenos Aires, numa estrutura de custo elevado e que vem trombando com uma dificuldade extra, a permissão de transporte, o cupo, urna espécie de vale que determina a quantidade de tonelagem por empresa. “Aí está um grande problema. Algumas empresas têm o cupo alto e não o utilizam plenamente, enquanto outras (como e o seu caso) têm esse índice muito baixo e transportam muito além. A ABTI, no entanto, está acompanhando de perto essa dificuldade, para melhor distribuir o cupo e permitir o acesso de outras empresas a ele” — diz.
O transporte fluvial seria uma excelente alternativa, mas ainda é incipiente. Por ele, diz Bettina, vai-se da Bacia do Prata até Foz do Iguaçu ou Corumbá, mas ainda é muito pouco.
Agora, o Governo Federal anuncia uma nova travessia fluvial entre Brasil e Argentina e isso já é um reflexo do acordo bilateral. Trata-se de permitir o transporte de passageiros e mercadorias entre a cidade gaúcha de Barra do Quaraí e Monte Caseros, na Argentina. Também não se pode confiar muito na malha ferroviária. Pela Fepasa, de São Paulo, e em seguida pela Rede Ferroviária Federal chega se até a fronteira, mas aí se esbarra na Ferrocarriles argentina, com bitola diferente.
Os transtornos não param por aí: as relações Brasil—Argentina têm também suas arestas. Com os problemas vividos pela economia portenha as empresas transportadoras brasileiras acabaram engolindo boa parte do transporte que era feito pelos argentinos e isso nunca e bem deglutido. Por meio do acordo bilateral, raciocina Bettina, essa situação terá de ser definida e os argentinos de alguma maneira vão se ver obrigados a admitir que dependerão do Brasil. “Vai ser difícil para eles aceitarem essa supremacia’’, que se dará por meio da ida de bens de capital do Brasil e volta de insumos básicos. Apesar de tantos embaraços, Bettina acredita ter sido dado um primeiro passo fundamental. “Isso é o que importa. Os efeitos virão depois” conclui.