Bettina – empresária e mulher
Revista Mercado, Janeiro de 1987
Lançada no mundo dos negócios pelas circunstâncias, Irene Elisabeth Lenci está à frente de uma empresa de transportes que, em breve, prestará serviços para a China.
Os governos do Brasil e da China firmarão, em junho próximo, convênio de permuta de know-how sobre rodoviarismo, de um lado, e transporte fluvial, de outro. O convênio em questão certamente não passaria de mais um documento rotineiro nos negócios internacionais — sem aspecto inusitado algum — se não envolvesse a personalidade de uma empresária brasileira, de 41 anos de idade, mãe de quatro filhos de dois casamentos e presidenta do conselho administrativo da Cia. Transportadora e Comercial — Translor, com patrimônio líquido de 75 milhões de cruzados e que será uma das primeiras empresas do setor a abrir o capital.
Essa mulher, Irene Elisabeth (Betina) Lenci não se deixou abater o ao receber como herança de seu primeiro marido (Walter Lorch), a Translor. O fato ocorreu em 1974, quando Betina ainda não completara 29 anos de idade. O grande fator para quebrantar o espírito não era, no caso, a pouca idade daquela jovem. Também não o era a pequena experiência daquela mulher, cuja atividade profissional não ultrapassava os limites de um início de carreira como repórter-fotográfica na sucursal novaiorquina de Manchete e, em seguida, como colaboradora da revista Veja, na época de seu lançamento.
Nada disso pesava como fator decisivo para abater o ânimo de uma mulher com menos de 30 anos, lançada no mundo dos negócios, sem experiência maior, armada quase exclusivamente da intuição feminina, ‘que me tem socorrido muito” na afirmação de Betina.
O motivo maior, capaz de desanimar neófitos e veteranos em negócios — homens ou mulheres — era, na verdade, o fato dramático de a empresa registrar o passivo de dois milhões de dólares, “contra um ativo praticamente inexistente”. Como prestadora de serviços, a Translor não tinha muito que oferecer a seus credores, além da boa disposição de sua nova proprietária, de firmar contratos que favorecessem ingressos financeiros com que pagar as dívidas. “Mas pagá-las — como de fato o fizemos —, dando prosseguimento aos negócios do meu falecido marido, que era um idealista” — explica a entrevistada.
“Idealismo prático”
A alusão de Betina à condição de idealista de Lorch (20 anos mais velho que ela) não encerra conotação pejorativa alguma.
Para eliminar qualquer possibilidade de interpretação nesse sentido, ela mesma se diz idealista, embora tenha o seu na conta de “idealismo prático” em contrapartida ao “idealismo sonhador” do ex-marido.
A diferença de conceituação, no caso, não se refere a uma questão particular, no entender da empresária. Trata-se, na verdade, de uma diferença fundamental da atitude do homem e da mulher diante da vida. ‘O que ocorre — diz Betina — é que o homem é mais sonhador e a mulher, mais prática” Para Betina, as razões dessa diferença consistem em aspectos culturais que presidem à formação de um e de outro. Quanto ao homem, sua condição de sonhador é exatamente o que o empurra para a realização de empreendimentos arrojados, ao passo que “o idealismo prático da mulher torna-a um ser social mais mantenedor e menos provedor”.
A empresária descarta, decisivamente, qualquer possibilidade de vinculação com o feminismo, “que não passa do outro lado da mesma medalha do machismo” Além disso, ela considera importante a presença do homem nos negócios, para completar sua capacidade de realização. Faz referência à “capacidade lógica do homem, que é diferente da da mulher” A diferença, nesse particular, consiste em que “o homem é mais objetivo, e consegue resumir, em poucas palavras, o muito que a gente fala como mulher”. Mas Betina considera que nem todo homem tem desenvolvida a capacidade de apreender o fundamental jogado dispersamente na fala feminina. “Só os homens que desenvolveram alguns aspectos da sensibilidade feminina existente neles conseguem esse resultado, que considero importante como fator de complementação não apenas da mulher mas também do homem”.
Quatro fases
A entrevistada procura evitar confusão tanto no sentido de tomar homens sensíveis como efeminados, quanto o inverso:
tomar mulheres de personalidade forte e decidida como seres masculinizados. Tece considerações a respeito desses pormenores, ressaltando o aspecto do condicionamento cultural de um e de outro.
Embora não aprofunde a questão, Betina considera que ela, como mulher que entrou no mundo dos negócios por motivo da morte de seu marido, leva “uma vantagem sobre o empresário que está no poder de sua empresa, digamos, por trinta anos consecutivos”. É que ela não carrega os preconceitos a que um empresário antigo está sujeito, principalmente se foi educado para Construir ou comandar o império da família. Tradicionalmente, a mulher não recebe esse tipo de condicionamento.
“Falta-lhe informação e formação” diz a empresária. O curioso, segundo ainda ressalta Betina, é que a mulher quase sempre chega a posições nas empresas por força de fatos supervenientes — sobretudo por viuvez.
Nessas circunstâncias, o aprendizado feminino ocorre em diferentes fases, as quais Betina divide em quatro:
1) sobrevivência;
2) consolidação de conquistas;
3) reconhecimento da própria capacidade; e
4) autoconfiança.
Essa concepção, a entrevistada diz tê-la adquirido a partir da própria experiência, mas admite que a esquematização, no caso, adapta-se à situação de algumas amigas suas.
No que diz respeito à sobrevivência, é aquela estória de que “é preciso preservar a existência dos que passam a depender da gente”. Essa mudança opera-se de forma radical, visto que a mulher se vê obrigada a abandonar sua posição anterior de mantenedora. “Tem de assumir a condição de provedora, para o que não está culturalmente preparada”, esclarece.
A chamada fase da sobrevivência talvez seja a que mais dramaticidade encerra. Mas, nem por isso, as demais são menos sofridas ao longo de todo o processo de transformação da mulher de mantenedora para a condição de provedora. Cada um desses estágios encerra aspectos de expectativa, para não dizer incerteza, “o que não é nada cômodo para a mulher, de vez que ela não pode perder oportunidade alguma
para exercitar o seu aprendizado’ — afirma Betina.
O crescimento A significação maior de todo o processo de superação de um estágio para outro não é exatamente a maneira como ocorre a mudança. “O que importa mesmo — assegura a entrevistada — é o crescimento interior que a gente vai registrando, à medida em que se superam as barreiras limite entre uma e outra fase” Aliás, esses limites não se definem concretamente nesse ou naquele acontecimento, seja uma discussão proveitosa, seja um agastamento com alguém, ou coisa assim. O que conta de fato é o resultado representado no crescimento, “que passa a emprestar qualidade superior à nossa atitude, transmitindo-nos a consciência da própria capacidade, por sua vez, traduzida em confiança própria. Para ilustrar a afirmação com um fato concreto, Betina cita o exemplo da programada abertura de capital de sua empresa.
A Translor, seguramente, será uma das primeiras firmas do setor de transportes a abrir o capital. O fato, no entanto, deverá ocorrer a médio prazo. Mas a mudança já começa a se operar a partir de agora, sob a forma de preparação da atitude que todas as pessoas da empresa — e não apenas seus dirigentes — devem passar a adotar.
A transformação da atitude como preparação para a tomada de uma providência concreta qualquer tem sido uma constante na Translor. Talvez isso ocorra porque Betina — como ela mesma enfatiza — aprendeu a aprender. Quer dizer: no processo constante de aprendizado, o que conta de verdade é a predisposição à mudança. Haja visto que quando recebeu a empresa por morte de seu marido, a empresária em formação recorreu aos velhos planos de seu companheiro.
Adaptações
Fundador da Translor em 1958, Walter Lorch também se sentia seduzido pelas mudanças. Principalmente pelas de natureza pioneira, a exemplo da tentativa de implantação de um centro de distribuição comercial e de transportes, segundo padrões norte-americanos da época.
Alemão de nascimento, ele se educou nos Estados Unidos, com graduação em Transportes pelo Instituto Massachussets de Tecnologia (MIT, na sigla norteamericana) e pós-graduou-se em Administração, na Universidade de Harvard. Foi a tentativa de criar no Brasil um sistema de
transporte ferroviário e fluvial e de implantar um centro distribuidor o que gerou as dificuldades da Translor, transferida a Betina anos depois, por herança com o passivo de dois milhões de dólares.
A entrevistada tece essas considerações para observar que seu primeiro marido também era dado a adaptações, a seu modo, com a característica empreendedora.
“A convivência com ele foi muito proveitosa para mim” — diz Betina. Sobretudo no que diz respeito à minha identificação com o setor de transportes como atividade comercial, pela qual desenvolvi grande afinidade, a ponto de estarmos nos voltando, agora, para o mercado chinês.
Essa é mais uma maneira de se adaptar à realidade, no dizer da atual dirigente da Translor. “Vamos levar nossa experiência no campo do rodoviarismo aos chineses, cuja realidade atual nesse campo é muito semelhante à brasileira de 30 anos atrás” — assegura a empresária.
Intuição Todo esse processo de desenvolvimento empresarial e que passa pelo crescimento pessoal, Betina considera fruto de um
aprendizado constante. Segundo ela, a importância da intuição feminina como apoio logístico ao seu crescimento pessoal e de empresária é flagrante. Sobretudo no relacionamento humano direto. Cita o exemplo da recontratação de assessores da Translor no tempo de Lorch. “Todos eles foram obrigados a se desligar da empresa, quando ela entrou em dificuldades” — afirma a entrevistada, para revelar em
seguida que, ao recontratar alguns deles, “a intuição feminina me deu muita segurança na escolha” Betina mostra-se muito segura também
no que diz respeito ao relacionamento familiar. Evita, habilmente, a possibilidade de confundir vida particular e existência de empresária. Mas, apesar de toda a segurança que se concretiza em habilidade, há momentos em que ela não consegue controlar ligeiras contrações labiais, quase imperceptíveis porém reveladoras de timidez momentânea. E quando se quer saber sobre seu segundo marido, Roberto Lenci, de quem enviuvou em 1983, depois de sete anos de casamento.
Num abrir e fechar de olhos, dissipa-se o toque de timidez subjacente. O rosto recupera o aspecto agradável, sem tensão, num sorriso discreto, e Betina limita-se a dizer que Lenci era descendente de italianos, parente dos Matarazzo, para quem trabalhava. “Nunca atuou na Translor’ — revela, já inteiramente descontraída, ao exalar em jato contínuo a fumaça de uma tragada.
Confiante
Superada a fase de tensão da entrevista, Betina revela confiança própria. Sente se à vontade para falar do pouco tempo disponível para a família, mas diz da importância que seus quatro filhos (três mulheres e um menino), com idades que variam de seis a dezesseis anos — as duas maiores (15 e 16 anos) do primeiro casamento. A entrevistada assegura que não alimenta preocupação de “formar seu sucessor ou sucessora na empresa e acrescenta: “acato muito a tendência que cada um dos meus filhos manifesta” A medida que fala dos filhos, Betina revela-se mais à vontade. Sem incorrer, no entanto, em atitude alguma de auto-suficiência. Sobretudo quando diz, entre irônica e temerosa: “não gosto de viajar de avião”. Mas, mesmo assim, mantém a disposição de voltar à China tantas vezes quantas forem necessárias para a realização de seus negócios naquele país — “fascinante pelo que nos pode ensinar em termos de atualidade, embora seja um povo milenar”
Sempre que fala da China, Betina faz alusão às chinesas. Não consegue esconder certa ponta de orgulho feminino, ao comentar a eficiência das líderes de comunidade com quem contatou: “todas muito eficientes, mas delicadas e agradáveis”.
A afirmação morre num sorriso que parece conter algo de cumplicidade com a delicadeza e a eficiência das chinesas, talvez como a dizer: “veja, passei sete anos pagando dívidas de uma empresa. E estou aqui. Assim… como sou”