Revista Exame – Maio de 1993
Transcrição
O nó na garganta do diabo
Postos aduaneiros como o de Uruguaiana estão em situação de colapso e ameaçam as exportações
Com pompa e circunstância, desde a época do ex-presidente José Sarney os chefes de governo do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai se reúnem com freqüência para discutir como viabilizar o Mercosul e facilitar o comércio entre os países. Nesses encontros à frente de refletores e em jantares diplomáticos repletos de salamaleques, tudo é motivo de comemoração. Mais difícil tem sido transpor para a realidade propostas que realmente representem a melhoria do sistema.
Os entraves para o Mercosul são os mais variados. Alguns quase intransponíveis. A começar pela burocracia e pela total falta de organização encontrada nas fronteiras. O problema atinge seu ponto crítico na fronteira brasileira de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, e atravanca todo o esquema de transporte de carga nacional para os parceiros comerciais vizinhos. “É uma situação insustentável”, diz Bettina Lenci, presidente da Associação Brasileira dos Transportadores Internacionais, ABTI. “Especialmente em Uruguaiana, o funcionamento da aduana tem comprometido seriamente o esforço de exportação na região. “Nos postos fiscais das fronteiras, o quadro de precariedade ficou mais exposto com o aumento significativo do comércio bilateral entre Brasil e Argentina no ano passado. Só em termos de despacho de carga, o volume quintuplicou. Desde então, a operação está sempre na iminência de colapso. Na semana passada, a aduana de Uruguaiana voltou a enfrentar uma greve de fiscais por falta de pagamento. O problema tomou-se corriqueiro, e a escassez de funcionários foi ficando crônica. Nos últimos três anos caiu de catorze para quatro a quantidade desses profissionais em Uruguaiana. “Não dá nem para a metade do trabalho”, dizia, no último dia 12, o delegado da Receita Federal na aduana, Cícero Martins, diante de uma imensa frota de caminhões que esperava a volta ao trabalho dos grevistas. Seja por falta de pagamento de salários, seja por motivos esdrúxulos como o desconhecimento das regras por parte de alguns fiscais, o fato é que o posto da fronteira de Uruguaiana tem operado por espasmos. É emblemático do poço de dificuldades que enfrenta o exportador no Mercosul. Quando está aberto, tem levado o dobro de tempo para liberar os processos. “Quando estamos conseguindo um padrão de eficiência, as substituições de pessoal começam a acontecer e a complicar tudo”, diz Martins.
VIA-CRÚCIS — Numa via-crúcis que parece sem fim, o trânsito de exportação e importação nas fronteiras esbarra em toda a sorte de burocracia. As guias de liberação de carga não estão unificadas e a cada aduana a parada dos caminhões toma-se demasiadamente longa. Não raro, levam mais de três dias. “Já fiquei 22 dias com uma carga parada nas aduanas da fronteira de Uruguaiana”, diz Guilherme Antonio De-Stefani, superintendente da Perdigão Transportes. “O sistema afunila-se em 400 metros de ponte”, afirma Bettina, da ABTI. Um problema adicional a forçar o atraso de carga é a desordem na inspeção. Os caminhões são estacionados no pátio de fiscalização de forma aleatória. Muitas vezes, cargas perecíveis, que têm prioridade e, em geral, liberação mais rápida, devem aguardar atrás de caminhões que passam por demoradas averiguações.
No Terminal Rodoviário Alfandegado de Uruguaiana, Trau, os caminhões ficam numa área onde inexistem instalações específicas para o transbordo das mercadorias.
A operação é realizada no meio do estacionamento. Com freqüência, cargas perecíveis são perdidas. Os veículos ficam expostos a risco de furtos. O horário de funcionamento dos vários departamentos do local, como a delegacia da Receita e o setor de controle aduaneiro, é diferente. Isso provoca desencontros nos processos, empurrando por dias a operação.
AMEAÇA — “Uruguaiana é a garganta do diabo”, diz De-Stefani, da Perdigão Transportes. Para contornar os problemas, a empresa chegou a montar uma infra-estrutura local que inclui armazéns de depósito e um escritório administrativo. No escritório são dezesseis profissionais, entre despachantes e pessoal de tráfego. Resultado: a passagem de cada caminhão da empresa pela fronteira tem uma despesa adicional média de 150 dólares. Pelos cálculos das transportadoras que realizam o percurso, a manutenção de um veículo na linha fixa Brasil—Argentina exigiria, para dar algum lucro, um movimento de 2,5 viagens de ida e volta por mês. Desde o ano passado, a média é de 1,5 viagem. “Sem uma urgente reformulação poderemos ter uma parada total”, afirma Bettina.
O quadro nas fronteiras preocupa não apenas os exportadores brasileiros. Já começa a provocar a ira inclusive dos clientes que esperam pelas mercadorias. Na terça-feira ll,o argentino Alejandro Corrêa, da Algodoneria São Nicolau, de Buenos Aires, desesperado com a falta de matéria-prima para a sua empresa, bateu na delegacia da Receita em Uruguaiana. Queria saber por que não havia sido liberado o caminhão com fibra sintética que havia importado da Celbrás, de São Paulo. Para sua surpresa, ficou sabendo que o preenchimento das guias de importação estavam com um pequeno erro — o CGC constante na guia era de uma filial da Celbrás — e o caminhão teve de esperar dezoito dias enquanto era refeita a operação. “Se continuar assim, não vou mais comprar do Brasil”, disse, irritado, Corrêa. Muitos podem repetir a ameaça.