Crianças gostam de abrir a geladeira.
Quando eu era criança, abria várias vezes por dia, mesmo sem fome.
Às vezes por tédio, outras por vontade de lambiscar. Era um movimento automático. Eu ficava em frente dela, a porta na mão, pensando o quê e se queria realmente comer alguma coisa. Uma espécie de relaxamento porque ocorria principalmente quando a lição de casa parecia não terminar nunca.
A cada dia a disposição das coisas dentro da geladeira mudava o que dava razão para eu ficar mais tempo com a porta aberta, procurando, o que muitas vezes não se encontra em geladeiras. Era quando brigavam comigo dizendo que eu ia descongelá-la.
A primeira sensação de autonomia que tive dentro de casa, além dos interregnos da lição do dia, foi a permissão de abrir a geladeira sem muita razão. (Em casas onde empregadas são contratados para fazerem o serviço, essa sensação é pouco sentida. A cama, a limpeza, a comida, tudo já nasce feito.)
A geladeira era uma máquina funcional, equivalia à televisão e a rádio vitrola, que também poderiam ser veículos para meu sentimento de independência, mas nestas só pude mexer muito mais tarde.
A geladeira por sua vez, a todos, era permitido abrir e fechar. Ela não tinha dono. Não tinha uma importância consciente para os habitantes da casa. O movimento de abrir e fechar, com o TLEC característico, tanto na ida quanto na volta, – apesar de que na volta era mais sonoro, – é lembrança até hoje.
A geladeira era uma GE, cujo logo de metal eram duas letras sinuosas incisas na porta e, abaixo delas, escrito em letra cursiva bonita lia-se “ General Eletric”. O logo era elegante e a geladeira formosa e branca, grande e espaçosa, carregava este símbolo com garbo. Tenho certeza que ninguém ligava para ela, porém para mim fazia parte da vida que ali escorria entre a cozinha, a copa e meu quarto. Quantas vezes não a abri, automaticamente, só para tentar dissipar mágoas e dúvidas?
Quando o silêncio baixava na casa podia-se ouvir uma espécie de RUMMRUMM, quase silencioso, com o qual eu adormecia agradavelmente. Sabia ser ela o único “personagem” da casa que trabalhava de noite, quase uma amiga secreta.
Em dia de feira, a profusão dos novos alimentos, que enchiam os vácuos deixados durante a semana, era um marco no meu calendário, com a incrível capacidade de cravar em mim, no abrir e fechá-la, um ritmo, uma cadência do tempo e a segurança de que nada mudaria em minha vida.
A administração de uma geladeira é uma das principais logísticas da casa bem administrada. Os restos eram colocados na primeira das prateleiras para não serem esquecidos; o lombo, o bife à milanesa frio, arroz, feijão e o purê de batata tinham o poder de me lembrar do dia anterior e a certeza que os veria no meu prato novamente. Abrir a geladeira e olhar já era imaginar o menu da semana. Laticínios na segunda prateleira. Na terceira, os legumes. Quanto aos doces guardados na quarta prateleira não me era autorizado voltar com a colher de arroz doce à tigela para mais uma colherada porque, diziam, a sobremesa azedaria. Pelo fato da prateleira estar abaixo da minha altura, à época e não ter dado ouvidos à regra, a segunda colherada, talvez por castigo pela desobediência, espatifava-se no chão. A carne e o frango ficavam na única gaveta. Na lateral, ovos e temperos.
Mas era a segunda prateleira que aguçava minhas papilas visuais e gustativas. O sabor das frutas e legumes me era indicado pelas cores, formas e tamanhos e era nessa direção que eu geralmente esticava o braço, encantada.
Estas lembranças são como ecos enviados para outro lado do mundo que, instantaneamente, no meio do nada, ressuscitam.
Hoje, fico com a impressão de que não lembramos o dia de hoje, amanhã.
“no abrir e fechá-la, um ritmo, uma cadência do tempo e a segurança de que nada mudaria em minha vida.”
Seus textos são incríveis Bettina…obrigada por compartilhar.
obrigada Elaine por ler GE e extrair um dos sentimentos ao abrir a geladeira quando se é criança.
Seu comentário é um incentivo importante.
Obrigada mesmo!
A Geladeira GE, fez parte das nossas familias e ganhou mais vida ainda na sua escrita.Concordo, plenamente com aquela visão nem tanto infantil, que sobrevive até hoje nas nossas memorias, visão esta de uma Amiga que morava na nossa casa. Bettina, esta sua capacidade de despertar os sentidos através de uma Geladeira, ( imagine você, que durante a leitura, me vi na casa onde passei, minha infância e adolescência,com meus irmãos e meus pais) é a mais perfeita combinação do seu estilo e da sua sabedoria.
querida Aninha,
para receber um comentário como o seu é que escrevo. É o meu incentivo.
Meu desejo é despertar no OUtro, o mesmo que lembranças, sensaçoes,fatos e fotos despertam em mim.
Compartilhar com pessoas queridas como voce. Obrigada. Envie sempre que sentir que “bateu” com v.
Com carinho e muito respeito pelo seus escritos, sempre B