As transformações que dizem respeito às mudanças no modo de viver, pensar, julgar, aceitar, são infinitas. As mudanças externas ocorrem com maior rapidez, é verdade, do que as nossas mudanças internas. Estas só ocorrem se nos aplicamos a entender o momento contemporâneo, aquele que está à nossa volta, acontecendo.
Tendo nascido nos meados do século passado, fui me aprimorando com as mudanças apesar de não me inserir ativamente nas transformações que ocorriam, como por exemplo, a revolução de 68, a tomada de poder dos jovens. Tampouco, por receio das drogas em voga, infiltrei-me no movimento Paz e Amor (livre). Mais tarde também não me identifiquei com o movimento feminista que perdura até hoje, intensamente.
Talvez, justamente, por ter nascido no final da segunda guerra levei – como a maioria das pessoas desta época – conservadoras – tempo para aceitar o acirrado movimento gay dos anos 70 apesar de não qualifica-lo como uma praga engendrada por Deus quando apareceu a primeira vítima, conhecida, da Aids, Rock Hudson.
Confesso que caí da cadeira! Como aquele homem lindo, sedutor, herói, do filme (com James Dean e Elizabeth Taylor) Giant ou traduzido aqui como “Assim caminha a Humanidade”, não era heterossexual? Um primeiro choque que demorou a se dissipar.
A maioria do meu círculo de convivência teve que lidar com a Intolerância e alguns ficaram no meio do caminho, aceitando a realidade por força das circunstâncias, pois começava a acontecer que netos e sobrinhos se tornaram parte deste – para nós– novo cenário sexual.
Hoje, e não foi por conta do politicamente correto, passei a entender que o movimento LBTG era um bom caminho sem volta.
Por que faço esta introdução pessoal? Porque preciso contar uma história comovente que aconteceu esses dias e posso afirmar que um preconceito pode se transformar em uma amálgama de aceitação e convivência natural com o diferente que deixa, para nunca mais voltar, de ser o diferente! Os movimentos acusadores das sinas, passam a ser integrantes do ser humano e da vida como ela é!
Um amigo gay, respeitado e querido, contava-me a história que acabara de vivenciar. (Esclarecendo, José, meu amigo, já vivia há mais de 15 anos com Alcides quando seu ex-marido, Hermeto, morreu). José e Hermeto, tiveram um casamento de longo período. À época de seu relacionamento, haviam feito um testamento em conjunto. Caso um adoecesse, o outro cuidaria do companheiro na doença e na tristeza. E assim aconteceu 17 anos depois da dissolução da relação de José com Hermeto.
José contava o périplo que foi cumprir a promessa escrita 17 anos antes desde o minuto em que foi informado pela empregada de que Hermeto havia falecido. Ele deixou seus desejos expressos e claros no testamento. Contava José, o custo e o tempo que tomou o tramite burocrático necessário para levar Hermeto “à morada final”.
José, fiel à memória e ao assinado, cumpriu todos os desejos sem omitir uma só frase do testamento, inclusive teve que lidar com os familiares que apareceram, depois de terem estado ausentes durante a vida de Hermeto que não tinha filhos, pai ou mãe para tocar a sua herança. Eles foram até a casa do falecido, olharam quadros, móveis, abriram armários para no fim da visita informar a José que tudo que ali estava não tinha sido tocado (insinuando, claro, a possibilidade de meu amigo ser um ladrão de espólio do qual é o testamenteiro).
Hermeto, diferente de José, optou pela cremação. Antes, porém teria que ter o velório para os amigos.
Já participei de vários velórios em casas grandes, elegantes, alugadas para tal fim e sempre me perguntei por que não na casa do morto como antigamente. Concluí por conta própria que a maioria dos que partiram mora hoje em apartamentos pequenos e não mais em casarões – ou casebres como nas fotos lá no nosso pobre Norte – aptos a receber os que vieram prantear um amigo ou parente.
A cada passagem do relato fui acolhendo as lágrimas de amor que José sentia eterno. Memórias, quando honestamente sentidas, voltam como verdades que foram!
Perguntei como Alcides, seu companheiro hoje, recebeu o fato de José cumprir tão à risca a antiga e tão forte relação, ao que José respondeu:
-”Maravilhosamente bem, acompanhando –me a cada passo, ajudando a desfazer os problemas que apareciam”. Tinha sido Alcides quem escondeu as cinzas para que seu companheiro não as visse “de corpo presente” e lembrasse que seu antigo companheiro havia se tornado pó. A tristeza de José era sensível e amistosa. Alcides a respeitara.
Nesse momento pensei com meus botões de viúva: será que meu companheiro atual faria o mesmo em relação ao meu marido do passado? Acho que não, principalmente por causa do relatado por José depois: Hermeto queria que suas cinzas fossem jogadas no mar da Grécia! O desejo estava por escrito, José não poderia deixar de executá-lo.
Angustiado e banhado em novas lágrimas disse que não sabia o que fazer com a sua promessa assinada.
– “Não foi no fio do bigode não”, frisou José. Debateu o desejo do falecido com Alcides que prontamente disse que o acompanharia nessa viagem um tanto fúnebre, concordou José comigo! Viajariam até Mykonos e sob o sol maravilhosamente claro e brilhante grego, jogariam as cinzas no Mar Egeu. Promessa cumprida não mais haveria lugar para fantasmas: eles estavam onde deveriam ficar: no profundo mistério da vida e da morte: o mar.
Consolei como pude meu amigo abraçando-o, feliz por ele: um testamento não é um papel que aceita tudo, como dizem sobre papéis.
Cumprir um testamento é penoso para quem fica, mas é necessário limpar, nos cantos traiçoeiros do pensamento, os restos mortais do passado.
Deixei José e sai pensando sobre fidelidade, lealdade e ética. Daí nasceu a vontade de passar adiante esta história real entre duas pessoas do mesmo sexo cuja relação afetiva é um exemplo de exercício de predicados maiores do que a opção sexual de cada um!
Acredito, que a relação entre avós e netos existe para contar que a inexorável, a incessante transformação de valores sem trégua da história dos costumes e valores, é um fato. Nada mais podemos deixar para eles além da confirmação de que o preconceito é combatido dentro de cada um de nós. De que não é uma tarefa “da boca para fora”, de conversa social, mas um sentimento livre para atuar no mundo, despreocupadamente, sobre as escolhas dos Outros. Passar a certeza de que os conceitos morais que hoje valem como verdadeiros no dia seguinte já não são mais.
Sou responsável em participar do processo de mudança dos paradigmas porque eu, avó, conheço o sentido do Tempo, a baliza que serve para acompanhar e reconhecer as transições de um conceito para outro, na maioria das vezes obrigando à uma transformação pessoal de verdade.
Seria muito bom se os 7 bilhões de habitantes do planeta se esforçassem a refletir sobre onde vamos estar amanhã!
lindo!