Mortais amorosos
Num domingo de Páscoa, meu companheiro saiu pela porta e não voltou mais. A porta deu um estalo e ao fecha-la, achei que ia morrer, a mão ainda na maçaneta. Ao me defender desta vontade, pensei na Ressurreição e o martírio de Cristo antes da Crucificação, mas surgiu a duvida: como ressuscitar se minha mãe não poderá me segurar em seus braços como fez Maria na escultura de Michelangelo com Jesus languidamente morto no seu colo, A Pietá?
A partir dai começou a minha peregrinação pela Via Crucis, imaginando quantas etapas de sofrimento teria que passar. Quantas plaquinhas indicativas do calvário terei que viver? São Doze paradas. Haveria uma Maria Madalena no caminho que acolheria minhas grossas lagrimas? Meu rosto transfigurado ficaria exposto como o sudário de Jesus Cristo? Perguntei-me se não seria melhor me apaziguar com os trabalhos de Hercules. Também doze seriam as etapas a vencer numa separação. Porem achei que o olhar religioso seria mais apropriado. A separação se passa em silencio de convento!
Não consegui ainda vencer as 12 plaquinhas indicativas do sofrimento de Jesus Cristo a caminho da Crucificação afinal, nos humanos, somos mortais amorosos, dependentes. Não vamos morrer e voltar para a Terra afim de terminar a missão. Somos infinitamente mais fracos e confusos. Sou cética em relação a Humanidade como um todo e a humanidade em nos mesmos!
O texto hoje diz respeito às oito plaquinhas conquistadas ao longo de muitos anos até chegar ao ponto do esquecimento. Como se o companheiro que saiu pela porta e não voltou mais nunca tivesse existido É um sentimento agradável do qual emana uma luminosidade transparente: o ar rarefeito de Liberdade. Equivalente, num take de cinema, ao esquecimento morrendo lentamente até esvair-se em fumaça.
Das plaquinhas vencidas, a mais íngreme é a quarta, pois nela emerge a saudade incrédula. A vontade da presença física, a lembrança insistente dos momentos inesquecíveis. Uma contradição, de não querer, mas ainda querendo tocar no corpo de quem fazia amor com você. O silencio do prazer esparramado em murmúrios sobre a cama desfeita.
Comecei pela quarta etapa sem mencionar as três primeiras.
No primeiro dia um alivio eufórico toma conta da gente. Uma falsa sensação de liberdade. Deste engano surge na tela da gente um vazio de ideias. Elas não encontram uma logica para o ocorrido. A historia fica sem trama. Não tem enredo nem voz. É um teatro mudo de um único ator. Você mesmo! No terceiro ato, os pensamentos em desordem, imagina-se o retorno do tudo como era antes. É uma passagem de intensidade dolorosa. Uma dor metálica misturada com cacos de vidro pontiagudos.
Passo para a quinta e sexta plaquinha. Na ordem, aparece o fantasma da saudade para assombrar a solidão seguida da raiva faminta. O sexto passo é o inicio do convívio com a sombra alheia: o lado sombrio do Outro, motivo de decepção e incredibilidade.
Na plaquinha sete, chega a tristeza da desilusão que se pergunta por que viveu-se tanto tempo ao lado da pessoa que saiu pela porta e não voltou. A oitava acomete a gente com a lucida percepção que a via Sacra ainda não terminou. Faltam quatro paradas. Intuímos que elas vão exigir muito tempo para chegar ao decimo segundo e ultimo desafio: a vontade de esquecer que uma parte da vida não será lembrada como memoria, descascada e descolorida pela ação do tempo.
É, contudo, nas paradas intermediarias que tomamos contato com a Perda. Não a do ser amado. A Perda amarrada numa pedra que vai descendo fundo até encontrar um chão para se instalar. Este chão é o da alma que a acolhe e embala para não doer mais tanto. A esperança é que a perda se acomode nos braços dela e, juntas, comecem a usufruir de novas alegrias e amparem o mortal amoroso que as carrega.
Olá Betina, adorei este seu texto. O paralelo traçado com a “via sacra” onde com tanta coragem a personagem purga a sua dor é perfeito. Você foi capas de envolver e fazer o leitor sentir todas as sensações que a separação provoca. Belo texto.
Bjos.
Léo
CAro Léo
Novo ano, novas tentativas , sendo uma das principais – além de rever os amigos – responder à leitores ( poucos) atentos e sensíveis ao texto e ao que desejo
exprimir. V. disse tudo: purgar a dor. É uma via crucis pois não há atalhos e nem placas indicando a direção a seguir.
Muito obrigada por ler e enviar seu comentário. Um abraço carinhoso, sempre Bettina